Sobre verdades e silêncios - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
O GLOBO -
A verdade que enfim emerge é condição de uma verdadeira reconciliação e fala por si: a tortura desonra quem a pratica
As carantonhas de torturadores e estupradores voltaram a assombrar os telejornais no último mês. Tudo os aproxima, parecem feitos de um mesmo barro. Inspiram igual indignação e repulsa. É melhor retirar as crianças da sala, é cedo para que conheçam o lado tenebroso do ser humano.
Estupro e tortura são crimes que exprimem uma radical negação da humanidade do outro. É martirizando o corpo que o torturador obriga alguém a falar. A força bruta parte ao meio a vítima, anula sua vontade, obrigando-a a fazer o que mais lhe repugna. O corpo, pela dor, cumpre o que o espírito recusa. A vítima se esfacela e carrega, desde então, um injustificado, mas recorrente, sentimento de culpa.
O estupro não é somente um crime covarde contra as mulheres. Desfigura suas relações mais íntimas com os homens, é um crime contra o amor. Ancestral, tem suas raízes na lei da selva e fermenta nas múltiplas agressões ao sexo feminino com que a sociedade contemporânea — o que é estarrecedor — ainda convive. O apartheid supostamente necessário nos trens da SuperVia é o exemplo da sobrevivência desse comportamento primata.
Desde que uma turista canadense foi violada dentro de uma van no Rio de Janeiro, o que provocou intensa comoção, veio à tona o que a opinião publica não sabia: não se trata de um caso esporádico. Existem no país dezenas de iniciativas solidárias que acolhem e socorrem mulheres violadas e nesses círculos é sabido que o estupro é uma ameaça que paira sobre qualquer mulher e independe da aparência ou personalidade da vítima.
Os dados oficiais, registrados nas Delegacias de Atendimento à Mulher, revelam a média de 17 casos de estupro por dia no Estado do Rio de Janeiro, o que caracteriza uma epidemia, aberração que clama por uma ação pública exemplar. Quantas outras calam por vergonha ou medo? A vergonha, o sentimento de imundície, de desonra, tudo corrobora na destruição psíquica da vítima que se refugia, solitária, no silêncio sem que por isso se cale sua memória dolorida.
No estupro como na tortura um paradoxo perverso se instala: as vítimas se autoflagelam enquanto os algozes se autoabsolvem. “Ela é uma sedutora, que me provocou”, diz o sádico travestido em pobre coitado. “É assim que se lida com terroristas”, proclamam os arautos da necessidade e da eficácia da tortura. Dar crédito a esse tipo de justificativa é uma forma de cumplicidade.
Tortura e estupro são crimes cujo alcance transcende as vítimas. Atentam contra a essência mesma de nossa humanidade, levam à falência todo um processo civilizatório que aboliu a lei do mais forte. Pela ferida que abrem no psiquismo individual e coletivo requerem uma tomada de posição radical da sociedade a favor da vítima, jamais do agressor. Sob pena de abrir uma fenda em si mesma, por onde passam os argumentos que vão corroer a democracia e acobertar barbáries.
A Comissão da Verdade acaba de apresentar seu primeiro relatório. Seu trabalho é, ao mesmo tempo, reconstrução da História do Brasil e da história das vítimas, já que só a verdade pode libertá-las, iluminando as zonas de sombra da memória. E, mesmo assim, há cicatrizes indeléveis. O escritor italiano Primo Levi, prisioneiro em um campo de concentração nazista e que quarenta anos depois se suicidou, em uma frase lapidar resumiu a tragédia do século XX: “Eu saí de Auschwitz, mas Auschwitz nunca saiu de mim.”
Os torturadores que queriam tanto que os torturados, subjugados, falassem agora querem que eles, homens e mulheres, hoje senhores de sua vontade, se calem.
Os sete membros da Comissão da Verdade, nomeados pela presidente da República, foram acusados por um coronel do Exército de “revanchismo de esquerda”, de “estar do lado dos que perderam na revolução”. Dos que ele chama, com desdém, “os derrotados”.
Ledo engano. A democracia que tanto nos custou restabelecer é a derrota da ditadura. A democracia brasileira elegeu para a Presidência da Republica uma mulher que foi torturada e que, recentemente, chamada de terrorista pelo ex-comandante de um dos principais centros de repressão da ditadura militar, ignorou a provocação, como convém a uma chefe de Estado. Nossa democracia é bem mais sólida do que imaginam aqueles que menosprezam os seus fundamentos.
A verdade que enfim emerge é condição de uma verdadeira reconciliação e fala por si: a tortura desonra quem a pratica. Essa é a lição do passado e um compromisso de nunca mais. Para os que, incapazes de arrependimento, persistem em justificar o injustificável, a sentença já lavrada é o desprezo.
A verdade que enfim emerge é condição de uma verdadeira reconciliação e fala por si: a tortura desonra quem a pratica
As carantonhas de torturadores e estupradores voltaram a assombrar os telejornais no último mês. Tudo os aproxima, parecem feitos de um mesmo barro. Inspiram igual indignação e repulsa. É melhor retirar as crianças da sala, é cedo para que conheçam o lado tenebroso do ser humano.
Estupro e tortura são crimes que exprimem uma radical negação da humanidade do outro. É martirizando o corpo que o torturador obriga alguém a falar. A força bruta parte ao meio a vítima, anula sua vontade, obrigando-a a fazer o que mais lhe repugna. O corpo, pela dor, cumpre o que o espírito recusa. A vítima se esfacela e carrega, desde então, um injustificado, mas recorrente, sentimento de culpa.
O estupro não é somente um crime covarde contra as mulheres. Desfigura suas relações mais íntimas com os homens, é um crime contra o amor. Ancestral, tem suas raízes na lei da selva e fermenta nas múltiplas agressões ao sexo feminino com que a sociedade contemporânea — o que é estarrecedor — ainda convive. O apartheid supostamente necessário nos trens da SuperVia é o exemplo da sobrevivência desse comportamento primata.
Desde que uma turista canadense foi violada dentro de uma van no Rio de Janeiro, o que provocou intensa comoção, veio à tona o que a opinião publica não sabia: não se trata de um caso esporádico. Existem no país dezenas de iniciativas solidárias que acolhem e socorrem mulheres violadas e nesses círculos é sabido que o estupro é uma ameaça que paira sobre qualquer mulher e independe da aparência ou personalidade da vítima.
Os dados oficiais, registrados nas Delegacias de Atendimento à Mulher, revelam a média de 17 casos de estupro por dia no Estado do Rio de Janeiro, o que caracteriza uma epidemia, aberração que clama por uma ação pública exemplar. Quantas outras calam por vergonha ou medo? A vergonha, o sentimento de imundície, de desonra, tudo corrobora na destruição psíquica da vítima que se refugia, solitária, no silêncio sem que por isso se cale sua memória dolorida.
No estupro como na tortura um paradoxo perverso se instala: as vítimas se autoflagelam enquanto os algozes se autoabsolvem. “Ela é uma sedutora, que me provocou”, diz o sádico travestido em pobre coitado. “É assim que se lida com terroristas”, proclamam os arautos da necessidade e da eficácia da tortura. Dar crédito a esse tipo de justificativa é uma forma de cumplicidade.
Tortura e estupro são crimes cujo alcance transcende as vítimas. Atentam contra a essência mesma de nossa humanidade, levam à falência todo um processo civilizatório que aboliu a lei do mais forte. Pela ferida que abrem no psiquismo individual e coletivo requerem uma tomada de posição radical da sociedade a favor da vítima, jamais do agressor. Sob pena de abrir uma fenda em si mesma, por onde passam os argumentos que vão corroer a democracia e acobertar barbáries.
A Comissão da Verdade acaba de apresentar seu primeiro relatório. Seu trabalho é, ao mesmo tempo, reconstrução da História do Brasil e da história das vítimas, já que só a verdade pode libertá-las, iluminando as zonas de sombra da memória. E, mesmo assim, há cicatrizes indeléveis. O escritor italiano Primo Levi, prisioneiro em um campo de concentração nazista e que quarenta anos depois se suicidou, em uma frase lapidar resumiu a tragédia do século XX: “Eu saí de Auschwitz, mas Auschwitz nunca saiu de mim.”
Os torturadores que queriam tanto que os torturados, subjugados, falassem agora querem que eles, homens e mulheres, hoje senhores de sua vontade, se calem.
Os sete membros da Comissão da Verdade, nomeados pela presidente da República, foram acusados por um coronel do Exército de “revanchismo de esquerda”, de “estar do lado dos que perderam na revolução”. Dos que ele chama, com desdém, “os derrotados”.
Ledo engano. A democracia que tanto nos custou restabelecer é a derrota da ditadura. A democracia brasileira elegeu para a Presidência da Republica uma mulher que foi torturada e que, recentemente, chamada de terrorista pelo ex-comandante de um dos principais centros de repressão da ditadura militar, ignorou a provocação, como convém a uma chefe de Estado. Nossa democracia é bem mais sólida do que imaginam aqueles que menosprezam os seus fundamentos.
A verdade que enfim emerge é condição de uma verdadeira reconciliação e fala por si: a tortura desonra quem a pratica. Essa é a lição do passado e um compromisso de nunca mais. Para os que, incapazes de arrependimento, persistem em justificar o injustificável, a sentença já lavrada é o desprezo.
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