Jornalista Andrade Junior

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

'O repetente piorou'

  Palavrório de Toffoli garante reprovação no Enem

Augusto Nunes:


José Antonio Dias Toffoli abriu seu palavrório na sessão do Supremo Tribunal Federal deste 4 de dezembro com uma vigarice em português indigente: “Esse caso, como todos sabem, mas para aqueles que desconhecem, que estão nos ouvindo, envolveu um editor que foi condenado por crime de racismo por divulgar livros de conteúdo antissemita contra os judeus”. 


O caso do editor foi apenas o pretexto que a maioria dos doutores aguardava para declarar inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que há dez anos vem retardando os trabalhos de parto de mais uma censura prévia à brasileira. Segundo o trecho marcado para morrer, as empresas não podem ser responsabilizadas por conteúdos publicados por terceiros, a não ser que haja um pedido judicial de remoção a ser atendido. 


Os superdoutores togados amam a censura, mas acham o ofício de censor muito exaustivo (além de pouco respeitado pelo Brasil que presta). Decidida a transferir para o colo das plataformas a tarefa de localizar e varrer das telas textos que possam piorar o humor do Pretório Excelso, a maioria dos integrantes entregou a Dias Toffoli a missão de provar que um direito individual — no caso, a liberdade de expressão — “não pode constituir-se em salvaguarda para condutas ilícitas”. 


De novo, o escolhido só conseguiu confirmar que os examinadores dos concursos de 1994 e 1995 não cometeram nenhuma injustiça ao impedi-lo de ingressar na magistratura paulista — e chefiar com 20 e poucos anos indefesas comarcas dos grotões.


Graças a um funcionário do STF, já li em estado bruto um texto escrito por Toffoli. É de chorar. Faltava ver em ação o tribuno. Revi mais de dez vezes o vídeo que registra a performance. É coisa para pranto convulsivo. Ainda acelerando na decolagem, o ministro faz a associação sem pé nem cabeça: “Podemos entender que aquilo que aquele policial fez em São Paulo na ponte, que desde ontem está sendo repetido nas televisões brasileiras, nos telejornais, é uma liberdade de expressão?”. Ao responder, ele já está evoluindo na estratosfera: “Se levarmos a liberdade de expressão ao absoluto, ele estaria protegido pela liberdade de expressão”.


Mas o que tem a ver uma coisa com outra? — espanta-se quem assiste ao vídeo que registra a performance. O repetente retruca com mais dois pontos de interrogação:


“A liberdade de expressão abarca qualquer expressão? O marido que bate na mulher dentro de casa?”.


Seguem-se um tiro de trabuco na gramática — “E todos sabemos relatos disso” — e o previsível afago na única mulher da Corte: “A ministra Cármen Lúcia, outro dia, lembrava esse episódio aqui no café conosco de um juiz do interior que contou a ela esse caso. ‘Doutor, eu não bato em mulher, não.’ ‘Mas o senhor está sendo acusado aqui de ter batido na sua mulher.’ ‘Ah, mas essa é minha. É a minha mulher. Mas eu não sou violento, eu não saio por aí batendo nas mulheres, não. Mas essa é minha.’ Isso é liberdade de expressão. Se nós levarmos o absoluto à liberdade de expressão, tudo está permitido. Ponto. É disso que se trata. É óbvio que o ilícito não se encaixa em liberdade de expressão. Ponto. E muito menos pode ser imunizado pela legislação diante do texto da nossa Constituição. Ponto”. 


No dia seguinte, outra discurseira inverossímil foi precedida por uma intragável sopa de sílabas servida pelo ministro Luiz Fux: 


“A grande verdade é que, hoje, quem reproduz essas informações são os robôs”, começa o único dos ministros que foi juiz por concurso, conheceu a rotina das comarcas do interior fluminense e, pelo jeito, esqueceu tudo. “Nós estamos tratando de liberar a expressão de pessoas, mas, na verdade, no fundo, o grande protagonista dessa circulação de todas essas informações, ou falsas ou verdadeiras, ou dirigidas para as bolhas, que eles próprios criam, é a inteligência oficial. A culpa é do robô.” 

É a deixa para Toffoli:


“A mão invisível da inteligência artificial”, emenda o protagonista. “Muitos se falam da mão invisível do mercado, mas existe a mão invisível da inteligência artificial. O que é que vai ter de regular as máquinas?”.


Então Flávio Dino decide lembrar que, graças a Lula, existe até um comunista no STF: “A mão é invisível, mas o cérebro é visível e os lucros mais ainda”, denuncia a volumosa evidência de que milhares de eleitores maranhenses não têm juízo. “São as maiores empresas do mundo. É a teoria do risco, na verdade.” 


Que teoria será essa, perguntam-se neste momento dez em cada dez espectadores do vídeo. Pois Toffoli sabe. 

Sabe mas não consegue explicar do que se trata. “A lei brasileira. A lei brasileira de 1912 já impôs a teoria do risco para as ferrovias. E o que era ferrovia senão uma via de comunicação?”, desanda. Até aquele momento, quem tem mais de cinco neurônios achava que estrada de ferro é uma via de transporte. 


“Como é que você ia colocar um vigia em cada trecho de trilho, de um metro e meio, dois, o batente, eu não sei quantos metros tem, mas em torno de dois, para quem já viajou de trem, a cada segundo são três, quatro barulhos que você escuta, não é, professor Paulo?”, acelera o ministro na curva depois de rebatizar de “batente” o que sempre se chamou “dormente”. Sem explicar quem é e o que faz por lá o professor Paulo, o orador resolve contracenar com a única mulher presente.


“Os trens de Minas Gerais, ministra Cármen Lúcia… Cantadas em músicas de Brant, letras de Brant e melodias de Milton Nascimento, e voz de Milton Nascimento”, recita Toffoli com expressão nostálgica. “Então, vejam, é de 1912 e é uma infovia”, regressa ao tema principal. 


“O que se discutia no Parlamento lá atrás, naquela época? Como é que você vai colocar um guarda a 100 metros para saber se alguém arrancou o trilho? É impossível.” A exemplo do ocorrido na véspera, o falatório do dia 5 foi acompanhado por enfeites e truques até agora ausentes do repertório retórico do ministro. 


Pausas dramáticas, o olhar de quem acaba de enunciar o 11º mandamento, o braço direito erguido como o de um maestro que não decidiu se é hora de acionar todos os instrumentos de sopro ou o primeiro violino — nada faltou no espetáculo da loucura (por enquanto) mansa. Num intervalo, Toffoli abriu espaço para o parceiro Alexandre de Moraes, no momento em guerra com o CAPTCHA de semáforos: 


“A inteligência artificial já existe, basta ver que não poucas vezes, e talvez seja uma das coisas mais chatas que existe, você vai entrar em alguma coisa, pergunta, você é um robô? Daí você fala não. Aí vem, clique onde tem semáforo, você clica o semáforo, nunca dá certo, só dá certo na terceira vez ou quarta vez, porque acho que o robô não tem tanta paciência quanto o ser humano. Então, para isso já existe, por que não? Para os perfis inautênticos”

Coube a Toffoli, merecidamente, a última carga de cavalaria consumada na semana de combate ao inimigo da vez: 


“As redes sociais se alimentam, sim, e há inúmeras pesquisas que eu vou citar no meu voto, de inverdades, de estímulo ao ódio, de estímulo a todo tipo de situação ilícita, porque, infelizmente, a maioria das pessoas torcem nos filmes pelo bandido, e não pelo mocinho. Não sei qual a razão da natureza humana, mas mutatis mutandis é disso que se trata. Aquilo que dá like nas redes sociais não é a verdade. Não são boas ações. Não são as redes de ajuda”.

Além de torcer pelos bandidos, Toffoli não perde chance de ajudá-los. Perdoa multas fixadas em acordos de leniência que livraram comparsas da cadeia, devolve a ladrões de estimação porções do produto do roubo que devolveram para escapar da Lava Jato e continua sonhando com a prisão dos xerifes. Mas o protagonista desse faroeste à brasileira pelo jeito parece saber que a maioria dos brasileiros nunca torceu por vilões. 

Tanto assim que anda sumido há quase cinco anos das ruas de São Paulo, onde tem casa, ou de Marília, onde nasceu. Cabeças avariadas não impedem necessariamente que o instinto de sobrevivência siga funcionando. 


Revista Oeste















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