Jornalista Andrade Junior

sábado, 28 de dezembro de 2024

Não há nexo de causalidade entre trama golpista e o 08 de janeiro (Parte 2)

 14/12/2024  Gabriel Wilhelms


Podemos concluir que, ainda que tomássemos o 8 de janeiro de 2023 como um episódio isolado, não há elementos para qualificar aquilo como um golpe ou tentativa de golpe de Estado, fato que já abordei anteriormente. Daí advém a necessidade de tentar vincular esse episódio com as tratativas golpistas ocorridas no ano anterior, retratando-o como uma continuidade de um plano golpista não efetivado em 2022. A gravidade dos fatos revelados, que incluiria até o desejo de assassinar o presidente e vice eleitos, comandaria maior seriedade ao 8 de janeiro, que, nessa narrativa, passa a despontar como a tentativa de levar enfim a cabo o plano abortado enquanto Bolsonaro ainda estava na presidência. Para que essa narrativa fizesse sentido, seria necessário demonstrar não uma correlação ideológica entre os conjuradores de alta patente e os civis acampados na porta de quartéis, mas casualidade, no sentido de que os últimos tenham agido deliberadamente por ordens dos primeiros, e que as depredações a que o país assistiu naquele fatídico dia fizessem parte de um plano maior, claro e definido.


O plano intitulado Punhal verde amarelo, que implicaria os assassinatos de Lula, Alckmin e Moraes, é, como ideia (pois, é claro, não foi concretizado), o que há de mais grave no relatório da Polícia Federal sobre as tratativas golpistas, e esse plano, bem como tudo o que foi até agora revelado sobre as intenções golpistas para o ano de 2022 (visando a manter Bolsonaro na presidência), não dependia de elementos civis para sua consecução. Por óbvio, não se pretendia confiar aos radicais aloprados acampados nas portas de quarteis a execução da coisa. Há um salto muito grande entre o que foi deliberado pelos aspirantes a golpistas em 2022 e as ações de quebra-quebra empreendidas por elementos difusos da sociedade civil, já sob a vigência do governo eleito — forçoso lembrar.


No relatório da Polícia Federal, há um total de 27 menções ao 8 de janeiro, incluindo menções à CPMI do 8 de janeiro, citações repetidas e algumas outras relevantes para nossa análise. O que destaco desde o princípio é que, como argumento, não há nada no vasto relatório de quase 900 páginas que demonstre um nexo de causalidade entre as tratativas golpistas e o 8 de janeiro. O que vemos, na verdade, é uma tentativa de converter um vínculo ideológico em uma prova de que os atos de depredação seriam uma continuidade do intento golpista abortado em 2022.


O general Mário Fernandes, que se encontra preso pela suposta “tentativa” de golpe, é um dos personagens mais relevantes na investigação. Foram encontrados em sua residência arquivos criados no dia 07/11/2022, que conteriam mensagens destinadas a tentar convencer o então comandante do Exército Brasileiro, Freire Gomes, a embarcar na aventura golpista. Aqui temos um padrão argumentativo que se seguirá por todo o relatório: “Na mensagem, que se foi propagada em vários aplicativos de mensagens, MARIO FERNANDES incita claramente o comandante do Exército a aderir a um golpe de Estado, indicando a realização de um “evento disparador como no passado, possivelmente, fazendo referência ao golpe de Estado de 1964. Tentou-se esse evento disparador no 08 de janeiro de 2023”. Vejam como se faz um salto, sem nexo de causalidade algum, entre um arquivo criado em novembro de 2022, ainda durante o governo Bolsonaro, e o 8 de janeiro. A única coisa que a mensagem prova é que Mário Fernandes estava ativo na conspiração golpista em 2022; sequer faz sentido pensar no 8 de janeiro como o tal “evento disparador”, no contexto da mensagem, já que, nessa data, nem Bolsonaro estava mais no poder nem Freire Gomes mais no comando do exército.


Chega-se ao extremo, para não dizer ridículo, de se apontar a leitura de determinadas matérias jornalísticas como fator contra os investigados. Segundo consta, o advogado Amauri Feres Saad, que seria um dos autores da famosa minuta golpista, a qual teria sido apresentada a Bolsonaro em 2022, acessou uma matéria da colunista Malu Gaspar, do jornal Estadão, sobre relatório da CPMI de 8 de janeiro. Isso é sintomático. Temos um advogado que seria um mentor intelectual da minuta, que, insisto em dizer, preconizava um golpe em 2022 (portanto, não em 2023), e a única conexão que conseguem fazer entre ele e o 8 de janeiro é o fato de ter lido uma matéria a respeito do tema.


Como havia de fato um ânimo golpista entre integrantes do governo (e possivelmente o próprio presidente), não é de se estranhar que tenha havido interlocução entre estes e manifestantes que, após a derrota de Bolsonaro nas urnas, começaram a se amontoar em portas de quarteis pedindo justamente um golpe. No dia 11 de novembro de 2022, por exemplo, Mauro Cid encaminhou um áudio ao então comandante do Exército Brasileiro, Freire Gomes, elogiando a nota à imprensa assinada pelos três comandantes (nota que Cid claramente entendeu ao avesso) e se expressando nestes termos: “Então, com a Carta das Forças Armadas, o pessoal elogiou muito, eles estão se sentindo seguro pra dar um passo à frente. Então, os organizadores dos movimentos vão canalizar todos os movimentos previstos (inaudível) o dia 15 como ápice, a partir de agora, lá pro Congresso, STF, Praça dos Três Poderes basicamente”. Referindo-se aos manifestantes, Cid foi além: “estão sentido o respaldo das Forças Armadas, porque agora esses movimentos, e, e é o que os caras querem, eles vão botar o nome deles no circuito pra aparecer lideranças que puxa o movimento pro, pro, pro, pro, pro STF e pro…para o Congresso”.


É compreensível que, à primeira vista, alguém veja nisso uma prova de que havia uma coordenação dos movimentos, de tal modo que isso tenha sobrevivido ao fim do governo Bolsonaro e desencanado no 8 de janeiro; Cid, afinal, fala em “dar um passo à frente”. Novamente, recordo o leitor de dois pontos importantes: o receptor da mensagem foi Freire Gomes, o qual, como o próprio relatório destaca muito bem, se manteve irredutível ante o ímpeto golpista de baderneiros como Cid; Cid falava motivado, como é patente, pelo desejo de impedir a posse de Lula.


Há também uma troca de mensagens aparentemente comprometedora entre Mauro Cid, e Rafael de Oliveira, então major. Rafael pergunta: “Ae… o pessoal tá querendo a orientação correta da manifestação. A pedida é ir para o CN e STF? As FFAA vão garantir a permanência lá??. Perguntas recebidas”. Cid responde: “Cn e stf. Vão”, indicando que os manifestantes deveriam deslocar-se para o Congresso Nacional e o STF.


A conclusão da PF é que tais diálogos “demonstram que já havia uma interlocução entre lideranças das manifestações antidemocráticas e integrantes do governo do então Presidente JAIR BOLSONARO, por meio de militares “Kids pretos”, para dar respaldo e intensificar os movimentos de ataque às instituições. Percebe-se que no dia 11 de novembro de 2022, já havia a intenção de que as manifestações fossem direcionadas fisicamente contra o STF e o Congresso Nacional, fato que efetivamente ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023”. Por mais questionáveis que sejam as mensagens, não há qualquer indicativo de que os manifestantes estivessem sendo orientados a depredarem o patrimônio público, ou coisa que o valha. O que parece claro é que naquele momento se tentava dar respaldo popular para as maquinações golpistas que teciam nos bastidores. Tais maquinações, devo seguir insistindo, referiam-se a 2022. Mesmo que aquiesçamos com a conclusão da PF de que os diálogos demonstram um direcionamento dos manifestantes “fisicamente contra o STF e o Congresso Nacional” na data referida, isto é, 11 de novembro de 2022, é preciso um salto especulativo para dizer que tal fato ocorreu em 8 de janeiro. Haveria lógica nisso se Bolsonaro ainda estivesse no poder na ocasião, ou se as Forças Armadas tivessem ido ao socorro dos vândalos, mas, como todos estão carecas de saber, não foi isso que aconteceu. Se, com o apoio popular, esperava-se que o presidente agisse no sentido do golpe, com o apoio das Forças Armadas, é simplesmente lógico que não haja paralelo com o 8 de janeiro, quando Bolsonaro já não era mais presidente.


Sintomático da fragilidade do vínculo entre as tratativas golpistas e o 8 de janeiro, o relatório usa conversas claramente especulativas, como se revelassem algum plano “oculto”.  Dessa forma, uma troca de mensagens entre o tenente-coronel Sérgio Cavaliere e Mauro Cid no dia 04/01/2023, em que o primeiro pergunta se “Ainda tem algo para acontecer?”, o que, segundo a PF, se referiria a uma possível ruptura institucional, e Cid responde, de forma afirmativa, concluindo que o que iria acontecer seria “bom” para o Brasil, é tratada como um possível indicativo de que os conjuradores de outrora pudessem estar por trás do que aconteceria quatro dias depois. Se isso acabar sendo usado como uma evidência de que o 8 de janeiro foi arquitetado por esse pessoal, trata-se de coisa muito frágil, em que absolutamente nada que se pareça com um plano é apresentado, sendo nada mais do que “pensamento positivo” de quem gostaria de ver uma ruptura, mas sem os meios para produzi-la.


A PF afirma o seguinte: “A expectativa entre os investigados de que um Golpe de Estado, apoiado pelos militares, ainda pudesse ocorrer perdurou já na vigência do novo governo, principalmente quando se desencadearam os atos golpistas do dia 08 de janeiro de 2023.” Ora, não tenho nada a contestar aqui. Há algo de surpreendente ou inesperado em pressupor que pessoas que haviam mantido conversas e tratativas de teor golpista ainda no final de 2022 alimentassem ainda em 2023 a “expectativa” de que um Deus ex machina viesse a produzir a tão sonhada ruptura? A chave aqui é expectativa, que tem como sinônimo a esperança. Ter expectativa, torcer por um desfecho, não significa que você concorrerá ou concorreu para produzir tal desfecho. Então gente que antes queria um golpe continuava querendo? Grande coisa. A não ser que o mero desejo seja transformado em uma prova (algo bem possível no Brasil alexandrino), não é porque secretamente você desejou a morte do imperador que você tem parte com o regicida que efetivamente o esfaqueou.


Para além de trocas de mensagens com caráter totalmente especulativo e que só fazem demonstrar a falta de controle sobre os desdobramentos, a PF parece tratar o recebimento de fotos dos atos do 8 de janeiro por Mauro Cid, enviados por sua esposa, como algum indicativo de que ele teria alguma ingerência no que ali aconteceu. Ora, o próprio teor da conversa demonstra, sem margem de dúvida, que ele não tinha protagonismo, papel ou poder algum e que os atos de vandalismo não faziam parte de um plano orquestrado com os militares. Em resposta a um post enviado por sua esposa, contendo um tweet de Olavo de Carvalho, Cid responde: “Se o EB sair dos quarteis…e para aderir [sic]” “Se o EB sair dos quartéis” é frase de quem torcia para que saísse, mas não poderia saber se sairia nem ter qualquer influência na decisão de sair ou não dos quartéis. “Se” revela incerteza; “se” sair é para “aderir”, revela pura especulação e “pensamento positivo”. Como agora sabemos, o exército saiu e não foi para aderir, mas sim para atuar contra os vândalos e manifestantes.


A Polícia Federal segue então apresentando supostas “ações dos investigados para embaraçar as investigações relacionadas à tentativa de golpe de Estado, inclusive a apuração dos fatos desencadeado no dia 08 de janeiro de 2023.” Ora, o leitor certamente deve compreender que ações de investigados para ocultar coisas que poderiam ser interpretadas como comprometedoras, por parte de autoridades, sobretudo autoridades nas quais não confiam, não é por si só uma prova de cometimento de crime. Não, há por exemplo, no fato de que Mauro Cid apagou mensagens trocadas com Sérgio Cavaliere no dia 04/01/2023, cujo conteúdo tratei alguns parágrafos acima, prova de que os atos do dia 8 fossem parte de um plano golpista, com participação ativa (não apenas como “torcedor”) de Cid ou demais conjuradores de outrora.


Fato é que a PF chega ao cúmulo de usar estratégias da oposição, no âmbito da CPMI do 8 de janeiro, como um indício de uma tentativa de “embaraçar as investigações”. É como se não fosse lícito que os parlamentares de oposição fizessem oposição ou criticassem o modus operandi adotado pelo STF em relação aos implicados.


Afirma-se no relatório, por exemplo que “Um dos objetivos descrito seria imputar os atos golpistas ao governo eleito, afastando a responsabilidade do grupo investigado e, com isso, desgastar o governo com o afastamento de ministros e conseguir o impeachment do atual presidente da República.” Ora, pensem o que quiserem dessa suposta estratégia, não há nada de golpismo ou tentativa de embaraçar as investigações (mesmo porque a CPMI, por óbvio, não é a PF e, portanto, não era responsável pela investigação policial de fato, funcionando em caráter puramente parlamentar) em uma narrativa, natural, de parte da oposição. A própria defesa de impeachments de ministros do STF, bem como uma tentativa de “desgastar o STF e o ministro Alexandre de Moraes” é, pasmem, tratada no relatório como uma tentativa de embaraçar as investigações. Críticas à atuação da Polícia Federal também se transformam em “prova”, na narrativa apresentada no relatório: “Outrossim, o documento tenta disseminar uma ação de intimidação e coação contra a Polícia Federal, criando a narrativa de que o órgão policial cometeu abuso ao cumprir ordens ilegais por ocasião da prisão dos golpistas do 08 de janeiro, tendo como finalidade anular as referidas medidas cautelares”. Basicamente, a crítica pacífica, legítima e parlamentar é tratada como uma mancomunação contra as instituições, como se as referidas autoridades estivessem acima do escrutínio público e seus atos não pudessem ser questionados e apontados como abusivos.


O resto dessa parte do relatório segue a mesma toada, apontando conversas e estratégias políticas da oposição bolsonarista como uma tentativa de atrapalhar as investigações. Novamente, não há nada que apresente qualquer ingerência de nenhum destes personagens no sentido de demonstrar “causalidade” nos atos de 8 de janeiro de 2023.


Por fim, não obstante a falta de nexo de causalidade entre uma coisa e outra, a Polícia Federal conclui o relatório, na parte concernente aos indiciamentos, tratando o 8 de janeiro como uma continuidade das conversas golpistas travadas em 2022, em desafio à lógica e aos próprios fatos apresentados.


Fato é que, de todos os documentos compilados, incluindo o plano Punhal verde amarelo, o evento Copa 2022, as diferentes versões de decretos golpistas que teriam sido elaborados por Bolsonaro, bem como a famosa minuta golpista, referem-se a 2022, a uma pretensão de impedir a posse de Lula e Alckmin e manter Bolsonaro no poder, pretensão não levada a cabo, por óbvio. Todas aquelas tratativas, o próprio teor das conversas, versam sobre o mesmo fato: impedir a posse de Lula. Lula assumiu, Bolsonaro saiu do país e não há nenhum documento, nenhum plano, nenhuma minuta, nada, absolutamente nada, que demonstre que o 8 de janeiro foi orquestrado pelos elementos de outrora. A única coisa que a PF logra demonstrar é que estes ainda nutriam uma “expectativa”, um desejo de que a sublevação pudesse ocorrer, o que, além de não ser prova nenhuma, é chover no molhado: se tinham espírito golpista nos últimos dias de dezembro, por óbvio que seguiam tendo nos primeiros de janeiro, mas isso não significa que tenham planejado o 8 de janeiro.


Fontes:


https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/09/como-foi-reuniao-bolsonaro-ministros-investigada-pf.htm


https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/09/general-augusto-heleno-virar-mesa-eleicoes-reuniao-ministerial.htm


https://g1.globo.com/globonews/estudio-i/noticia/2024/11/21/mauro-cid-relembre-a-trajetoria-do-ex-ajudante-de-ordens-de-bolsonaro-entre-prisoes-e-depoimentos.ghtml


https://www.poder360.com.br/justica/pf-ve-tentativa-de-anular-provas-com-audios-de-mauro-cid/


https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/11/21/ex-comandantes-do-exercito-e-aeronautica-revelaram-a-pf-que-bolsonaro-apresentou-plano-de-golpe-veja-os-depoimentos.ghtml


https://www.cnnbrasil.com.br/politica/novo-depoimento-de-mauro-cid-ganha-forca-apos-ex-comandantes-confirmarem-reuniao-para-discutir-minuta-golpista/


https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ex-comandante-do-exercito-confirma-reunioes-sobre-minuta-do-golpe-dizem-fontes-da-pf/


https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ex-comandante-do-exercito-ameacou-prender-bolsonaro-se-ex-presidente-insistisse-em-plano-de-golpe/


https://www.poder360.com.br/poder-justica/leia-a-integra-com-as-884-paginas-do-inquerito-do-stf-sobre-golpe/


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm


https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/11/20/quem-e-mario-fernandes-general-preso-pela-pf-envolvido-em-trama-golpista.htm


https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/suposto-autor-de-minuta-defende-em-livro-remocao-de-ministros-do-stf


https://www.cnnbrasil.com.br/politica/em-mensagens-obtidas-pela-pf-militar-explica-recuo-de-bolsonaro-citando-golpe-fracassado-no-peru/











publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/nao-ha-nexo-de-causalidade-entre-trama-golpista-e-o-08-de-janeiro-parte-2/

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