Ricardo Vélez-Rodríguez
500 dias de despotismo do juiz Alexandre de Moraes, que nunca dá por terminado o “Inquérito do fim do mundo”, à luz do qual a liberdade dos cidadãos é assassinada, diariamente, e por força do qual o Brasil tem hoje a quantidade verdadeiramente catastrófica de mais de mil presos políticos! Parece uma total insensatez, mas já nos acostumamos à morte da liberdade. Essa é a nossa desgraça. O que é pior, nos resignamos a viver o dia a dia sem liberdade, apenas gozando os pequenos bens cotidianos que a “regularidade das instituições” nos garante.
O estatismo, do qual somos tributários, tem raízes antigas no Corpus Iuris Civilis de Justiniano (482-465), promulgado em 534 e que consolidou o seguinte princípio que matou a liberdade e endeusou o Estado: “Non est civitas propter civem sed cives propter Civitatem” (“Não está o governo em função do cidadão, mas o cidadão em função do Governo”). O grande mestre liberal, professor Miguel Reale (1910-2006), considerava que o direito morreu no Brasil quando o Direito Civil, aquele que busca equacionar o ideal de justiça entre as pessoas, foi substituído pelo Direito Administrativo, que encadeia os cidadãos e regula a dependência das pessoas em função do Estado.
Essa situação trágica de desarraigo da Lei era caracterizada pelo grande sociólogo francês Alain Touraine (1925-2013) com a seguinte afirmação: “Na América Latina há muitos governos que acham que têm estabilidade. Mas, na verdade, só há um país com instituições estáveis e esse país é o Brasil”. “Instituições estáveis”, por elas entendia o professor Touraine um modelo de social-democracia suficientemente estruturado. Convenhamos que Touraine olhava para a nossa tradição imperial e para a centenária história republicana, toda ela recheada de estatismo, mesmo que modernizador em alguns períodos, mas afinal de contas, patrimonialismo estatizante, ou seja, “Estado mais forte do que a sociedade”.
Mas, sejamos sinceros: o fato é que vingou, na nossa história, o estatismo, não a conquista definitiva da liberdade, como frisou com claridade meridiana o grande pensador liberal Antônio Paim (1927-2021), no seu clássico livro de 1978, A querela do estatismo[1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978]. O quadro desse profundo desarranjo que escravizou os indivíduos mas lhes garantiu uma liberdade limitada pelo paternalismo estatizante foi traçado assim, com maestria, por Alexis de Tocqueville (1805-1859) em relação ao seu país, a França:
“Quando o amor dos franceses pela liberdade política despertou, já tinham concebido, em matéria de governo, um certo número de noções que não somente combinavam bem com a existencia de instituições livres, mais que isso, quase lhes eram opostas. Tinham admitido como ideal de uma sociedade um povo cuja única aristocracia seria a dos funcionários públicos e uma administração única e todo-poderosa dirigida pelo Estado e tutelando os particulares. Ao querer a liberdade não tencionavam descartar essa noção primeira e tentaram conciliá-la com a ideia de liberdade. Empreenderam então amalgamar uma centralização administrativa sem limites e um corpo legislativo preponderante: a administração da burocracia e o governo dos eleitores. A nação como conjunto teve todos os direitos da soberania, cada cidadão como particular foi comprimido na mais estreita dependência: a uma pede-se a experiência e as virtudes de um povo livre, ao outro, as qualidades de um bom servidor”.
Tocqueville prossegue assim na descrição desse sistema todo especial, com instituições sofisticadas mas sem liberdade: “É este desejo de introduzir a liberdade política no meio de instituições e ideias que lhe eram alheias ou opostas, mas às quais já nos habituamos ou cujo gosto já concebêramos de antemão, que, há sessenta anos, produziu tantas tentativas vãs de governos livres seguidos por revoluções tão funestas até que, finalmente, cansados por tantos esforços, desgostados por um trabalho tão duro e tão estéril, abandonando sua segunda meta para voltar à primeira, que muitos franceses reduziram-se a pensar que viver como iguais debaixo de um senhor, ainda tinha, afinal de contas, alguma doçura. E assim acontece que hoje nos assemelhamos muito mais com os economistas de 1750 do que com nossos antepassados de 1789”.
Bom: fazendo um pequeno parêntese: não estamos tão longe assim do mundo civilizado – dizem os augustos ministros do condomínio que nos rege, com os socialistas enchendo as burras com o Tesouro da Nação, sob a batuta – diríamos o tacape – de Alexandre de Moraes e colegas da Alta Magistratura do STF-TSE, que repete historicamente a gesta pombalina do “despotismo ilustrado” e do Supremo como “Poder Moderador!”
Mas voltemos, já para terminar, a Tocqueville, certamente mais interessante que os augustos Ministros do Supremo brasileiro. A respeito do que se passou na França, escrevia o grande deputado pela Normandia: “Muitas vezes cheguei a me perguntar onde estaria a fonte desta paixão pela liberdade política que, em todos os tempos, levou os homens a realizarem as maiores coisas que a humanidade cumpriu e em que sentimentos está se enraizando e alimentando”.
“Vejo que quando os povos são mal dirigidos – prossegue o grande pensador – concebem com facilidade o desejo de governar-se a si próprios, mas esta espécie de amor da independência gerado por certos males particulares e transitórios, trazidos pelo despotismo, nunca é durável; pensavam amar a liberdade quando na realidade só odiavam o dono. O que os povos feitos para serem livres odeiam é o próprio mal da dependência”.
“Tampouco creio – continúa o autor de A Democracia na América – que o verdadeiro amor à liberdade jamais tenha sido gerado pela única visão dos bens materiais que oferece, pois esta visão muitas vezes fica turvada. É verdade que com o tempo a liberdade sempre traz, a quem sabe retê-la, uma vida remediada, o bem-estar muitas vezes, a riqueza. Existem, porém, tempos onde ela perturba momentaneamente o uso de tais bens e outros onde só o despotismo permite seu gozo transitório. Os homens que nela só apreciam estes bens nunca a conservaram por muito tempo”.
Destaco, em negrito, o seguinte parágrafo de Tocqueville, que fixa a essência da verdadeira liberdade:
“O que, em todos os tempos, tão fortemente amarrou os corações de certos homens à liberdade é a sua própria atração, seu encanto, independentemente de suas dádivas; é o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento sob o único governo de Deus e de suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa que ela própria, foi feito para a servidão”.
E conclui o autor de O Antigo Regime e a Revolução: “Certos povos perseguem obstinadamente (a liberdade) através de toda espécie de perigos e misérias. O que amam não são os bens materiais que lhes dá: consideram-na ela própria como um bem tão precioso e tão necessário, que nenhum outro poderia consolá-los pela sua perda e que de tudo consolam-se ao gozarem dela. Cansa outros no meio de sua prosperidade deixando-a ser arrancada de suas mãos sem resistir, devido ao medo de comprometer por um esforço este mesmo bem-estar que lhe devem. O que falta a estes para serem livres? O que? O próprio gosto de sê-lo. Não me peçam analisar um gosto sublime, que é preciso sentir. Entra por si mesmo nos grandes corações que Deus preparou para recebê-lo, enchendo-os e inflamando-os. Temos de renunciar a explica-lo às almas medíocres que nunca o sentiram” [Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, 3ª edição, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, pp. 159-161].
*Artigo publicado originalmente no site do autor.
publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/historia/direito-e-liberdade-segundo-tocqueville/
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