Gabriel Wilhelms
Muitos têm se valido das mais recentes revelações a respeito de um suposto plano de golpe de Estado, que incluiria os assassinatos de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, com fim de impedir a posse do primeiro e manter Bolsonaro no poder para, com ar triunfante, arguir que isso seria a prova cabal de que o 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado. Teríamos aqui uma narrativa coesa, vinculando os baderneiros do fatídico dia de janeiro com membros de alto escalão da hierarquia militar e o próprio ex-presidente. Como procurarei demonstrar, não só os fatos não permitem construir tal narrativa como eles concorrem para demonstrar que o 8 de janeiro não foi e não poderia ter sido uma tentativa de golpe.
Mas, antes de adentrar na questão, convém já remover um obstáculo. A narrativa invariável tem sido de que todos aqueles que se aventuram em contrariar a versão “alexandrina” dos fatos, ou negar que os atos do dia 08 de janeiro tenham sido “terroristas”, ou que há um nexo de causalidade entre as tratativas golpistas de 2022 e aqueles atos, e por aí vai, são suspeitos de bolsonarismo e estão fazendo a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro. Não que eu tenha que me justificar de coisa alguma, mas, como é salutar demonstrar que o mundo não é maniqueísta da forma como pintam, respondo à provável acusação de bolsonarista com dois pontos.
Primeiro, convido os potenciais detratores a lerem meus artigos publicados neste Instituto Liberal durante o governo Bolsonaro para comprovarem que eu orgulhosamente me declarava e atuava como oposição ao governo, que reputava tenebroso. Sim, oposição de direita a um governo de direita, pois o mundo não é maniqueísta. E, se fazia oposição, a razão principal era justamente o longo histórico de apoio de Bolsonaro à ditadura militar (assim como Lula tem longo histórico de apoio às ditaduras de esquerda), apoio reverberado por muitos quadros de seu governo que, lamentavelmente, incluía militares da ativa. Não houve uma, mas diversas ocasiões em que o governo Bolsonaro fez sinalizações, nem sempre veladas, de que tinha intenções golpistas. E aí chegamos no segundo ponto. Houve pelo menos uma reunião ministerial, ocorrida em julho de 2022, gravada por Mauro Cid e de conhecimento público desde fevereiro deste ano, em que foi aventada a possibilidade de um golpe de Estado; o então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Augusto Heleno, falou em termos como “Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”, enquanto o general Mario Fernandes, então secretário-executivo da Presidência da República, chegou a inquirir sob a forma de governo subsequente: “Porque, no momento que acontecer, é 64 de novo? É uma junta de governo? É um governo militar?”; Wagner Rosário, então ministro-chefe da Controladoria Geral da União, por sua vez, demonstrou preocupação com a gravação da reunião. Isso, é claro, sem falar dos depoimentos e troca de mensagens, agora também públicos, que atestam que houve diversas reuniões, com a ilustre presença do presidente, debatendo a elaboração de um decreto golpista. Estou convencido, tanto pela índole autoritária de Bolsonaro — índole da qual ele deu reiteradas provas nas três décadas que passou no Congresso — quanto pelas sinalizações de seu governo, quanto pelo teor das supracitadas reuniões, que o ex-presidente participou sim de tratativas golpistas (ainda que, claramente, elas não tenham sido levadas a cabo). Vou além: creio que, se houvesse disposição dos comandantes das Forças Armadas, a intenção teria se materializado e Bolsonaro teria de fato dado um golpe de Estado.
Com essa introdução, digo que não é defesa de Fulano ou Beltrano que me interessa; a única coisa que busco defender aqui é o Estado de Direito e a liberdade, tão vilipendiados por uma narrativa enganosa e maniqueísta.
Comecemos pela delação de Mauro Cid. Os desdobramentos da Operação Contragolpe, embora não sejam baseados diretamente em depoimentos do ex-ajudante de ordens, são um capítulo a mais de um inquérito que se baseia e muito em sua delação. Originalmente, como muitos devem lembrar, ele foi implicado no caso da venda das joias sauditas, mas acabou assinando delação premiada em setembro de 2023 e foi solto. Voltou a ser preso em março de 2024, vale recordar, após o vazamento de áudios em que ele acusava Moraes e a PF de já terem uma “narrativa pronta” e de o instigarem a mentir para confirmar tal narrativa. Em maio ele voltou a ser solto.
Mauro Cid afirmou em delação (que segue sob sigilo) que houve reuniões tratando de um plano de golpe de Estado com a participação do então presidente Jair Bolsonaro. Seria apenas a palavra do tenente-coronel contra a dos implicados, mas aqui é que a coisa fica interessante. Tanto o ex-comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, quando o da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Júnior, confirmaram essa versão. Ambos afirmaram terem presenciado reuniões em que se aventava e discutia a possibilidade de um golpe com o fim de impedir a posse de Lula e manter Bolsonaro na presidência. Pelo menos uma das reuniões teria acontecido no Palácio da Alvorada, com a presença de Bolsonaro, de todos os comandantes das Forças Armadas e o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, sendo o tópico um plano de golpe apresentado pelo próprio presidente.
Ocorre que nem Freire Gomes nem Baptista Júnior aceitaram participar da trama golpista. Isso explica, por exemplo, porque ambos se tornaram alvos de ofensas por parte de Walter Braga Netto, que foi ministro da Defesa de Bolsonaro e posteriormente seu vice nas eleições de 2022.
Diante da insistência de Bolsonaro no golpe, Freire Gomes chegou, de acordo com o relato de Baptista Júnior, a ameaçar o então presidente com voz de prisão se ele seguisse investindo na ideia. O ex-comandante da Aeronáutica é claro: “Caso o comandante tivesse anuído, a possível tentativa de golpe de Estado teria se consumado”. O único a concordar com a conjura teria sido o então comandante da Marinha, Almir Garnier, que teria colocado as tropas à disposição de Bolsonaro.
Temos aqui, creio, o ponto mais relevante para nossa análise. Tudo leva a crer que, de fato, a alta cúpula militar foi assediada por elementos subversivos da ordem, o que incluiria o próprio presidente. Se é verdade que a trama golpista não foi levada a cabo, nem por isso deixa de ser grave (ainda que não necessariamente criminoso) que sequer se tenha cogitado a ideia. Mas o fato é que não só não ocorreu golpe como o próprio Bolsonaro teria corrido o risco de receber voz de prisão, tamanha foi a rejeição da ideia pelo Comando do Exército. Eis a cereja do bolo: com a desonrosa exceção da Marinha, as Forças Armadas se opuseram ao golpe desde a primeira hora.
Parar a análise na seriedade dos fatos aqui seria preguiçoso e contraproducente, e dar o passo seguinte, que tantos por aí têm feito, de apelar à gravidade das tratativas golpistas, para afirmar com a boca cheia que isso comprova que o 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe é pura desonestidade intelectual.
Ora, se, estando Jair Bolsonaro ainda ocupando a cadeira presidencial, se deliberou golpe antes da diplomação e da posse de Lula; se o governo era formado em grande parte por militares, tanto da reserva quanto da ativa; se, basicamente, tendo a máquina na mão e um militar reformado como chefe de Estado, ainda assim, as Forças Armadas disseram não ao golpe, como alguém poderia pretender ser levado a sério ao afirmar que elas apoiariam a sublevação de centenas de civis, em grande parte idosos, armados com batons e bolinhas de gude, quando o novo presidente já estava empossado e exercendo a Presidência?
É inevitável admitir, portanto, que os elementos do 8 de janeiro não contavam com o apoio das Forças Armadas. Aliás, naquele dia fatídico, as FA atuaram contra os vândalos, não a seu favor. Tal constatação nos leva a outra, tão inevitável quanto a primeira. Virou lugar comum na narrativa alexandrina, bem como nas condenações feitas pelo plenário do STF, colocar golpe, tentativa de golpe e desejo de golpe no mesmo saco. A pergunta que os que se dizem convencidos de que o 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe devem responder é: os baderneiros tinham os meios necessários para dar um golpe de Estado? A resposta é um alto e sonoro não. Para ser bem sucedido, um golpe no Brasil precisaria, no mínimo, contar com o endosso das Forças Armadas. Ora, sendo fato incontestável e atestado pelas próprias investigações da Polícia Federal, sob relatoria de Moraes, que os militares não embarcaram na aventura golpista, nem as Forças Armadas como instituição tiveram parte com a baderna, não haveria o menor risco de, já sob o governo Lula, com comandantes escolhidos por ele, elas virem a se solidarizar com os elementos civis que decidiram depredar prédios públicos e tomar à frente ou ao menos endossar um golpe de Estado.
Percebam que é o próprio inquérito, recentemente finalizado pela Polícia Federal, que, ao afirmar categoricamente que o golpe só não ocorreu em 2022 pela posição “inequívoca, dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, general de Exército FREIRE GOMES e Tenente-Brigadeiro do Ar CARLOS DE ALMEIDA BAPTISTA JUNIOR, e da maioria do Alto Comando do Exército, de permanecerem fieis aos valores que regem o Estado Democrático de Direito”, atesta que os vândalos não dispunham dos meios para perpetrar um golpe de Estado. Ora, se não tinham os meios para tal, por óbvio não deveriam ser condenados por um golpe que não ocorreu, tampouco por uma “tentativa”. Como pode haver tentativa se eles não dispunham dos meios para tornar isso realidade? Não tenho dúvidas de que no seu âmago desejavam mesmo um golpe, que tinham a expectativa de que o povo e os militares se juntassem a eles em uma massiva sublevação, mas ninguém deve ser punido pela intenção, somente por seus atos. Se não tinham os meios necessários para dar um golpe (e depredar prédios públicos por si só não produz golpe), se trata de um crime impossível de ser executado, independentemente das intenções e dos devaneios dos elementos. Por óbvio foram cometidos crimes que careciam sim de punição, mas a condenação por golpe de Estado, tentativa de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito e quejandos é algo absurdo. Se tais crimes eram impossíveis de serem executados, não cabe tal punição, e isso quem diz é o próprio Código Penal: “Art. 17 – Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.
Fontes:
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/09/como-foi-reuniao-bolsonaro-ministros-investigada-pf.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/09/general-augusto-heleno-virar-mesa-eleicoes-reuniao-ministerial.htm
https://g1.globo.com/globonews/estudio-i/noticia/2024/11/21/mauro-cid-relembre-a-trajetoria-do-ex-ajudante-de-ordens-de-bolsonaro-entre-prisoes-e-depoimentos.ghtml
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/nao-ha-nexo-de-causalidade-entre-trama-golpista-e-o-08-de-janeiro-parte-1/
0 comments:
Postar um comentário