Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

'O linchamento do general',

 por J.R. Guzzo

 A Justiça brasileira de hoje não aplica a lei que está escrita, nem precisa da formalidade das provas para combater a direita. Isso é coisa de um passado conservador, totalitário e fascista


A prisão do general Braga Netto pela Polícia Federal, e por ordem do ministro Alexandre de Moraes, vale por um curso completo de graduação, pós-graduação e doutorado numa disciplina básica da Escola Nacional de Ditadores. Essa disciplina se chama “Falsificação do Processo Penal na Criação de Golpes de Estado”. O curso vem acompanhado, sem aumento de mensalidades, por uma especialização em “Uso da Imprensa Como Assessoria de Divulgação da Polícia”. O curso é fácil. A Escola Nacional de Ditadores é a que oferece as perspectivas de carreira mais promissoras no serviço público do Brasil de hoje. 

Os fatos objetivos registrados na prisão do general Braga, ex-candidato à vice-presidente na eleição de 2022, mostram a filosofia central do curso quanto ao processo penal brasileiro: fica abolido, para efeitos legais ou de qualquer outra ordem, o processo penal brasileiro. Não tente, é claro, fazer isso por sua própria conta. 

A doutrina só vale para agentes da Polícia Federal que atuam no serviço de segurança armado do STF, no setor de Manufatura e Comércio de Golpes de Estado Com o Uso de Estilingues. Mas para eles a regra é clara: no inquérito perpétuo do ministro Moraes, as leis penais não valem. 

Não se trata aqui, como se pretende demonstrar em seguida, de opinião de jornalista — coisa que em geral vale menos que uma caixinha de chicletes vazia, pelo que você ouve e lê por aí na mídia. A abolição do ordenamento legal do Brasil por Moraes e por seus esquadrões policiais é uma realidade provada por fatos materiais, públicos e registrados por escrito. O caso do general Braga é apenas a última e mais ruidosa comprovação disso. Vamos então a esses fatos, por partes. A primeira violação da lei é o próprio motivo que deram para a prisão: “risco para a investigação”, acompanhado de “tentativa de obstrução da Justiça”. É erro com erro. 

Se a polícia disse que havia “risco”, então teria, obrigatoriamente, de dizer que risco era esse, na vida real — aliás, essa seria a primeira pergunta de qualquer juiz, em qualquer país civilizado, para o delegado que pede a prisão. A PF não disse nada, e nem Moraes perguntou coisa alguma. É exatamente o mesmo com a suspeita de obstrução. É obrigação elementar da polícia descrever com precisão como seria feita, na prática, essa obstrução. Não houve descrição nenhuma. A PF presumiu que haveria a tentativa — e o ministro presumiu junto. O valor das duas presunções, juridicamente, é zero elevado à potência zero. Se o general pudesse recorrer à instância superior, como um traficante de drogas qualquer, ele seria solto na hora. 

Mas ele não é um traficante de drogas qualquer. É um general do Exército Brasileiro — e isso, quando se leva em conta a conduta moral de seus superiores e colegas, vale hoje o mesmo que um Judas de Sábado de Aleluia, desses em que todo mundo pode bater sem correr risco nenhum. Braga, como tantos outros indiciados no “inquérito do fim do mundo”, não tem direito à instância superior — já está sendo julgado diretamente na instância máxima e, portanto, não pode recorrer a ninguém. É a aberração dentro da aberração.

Há violação ao Código Penal, também, quando a PF e Moraes acusam o general Braga de ter “tentado” falar com o pai do coronel Cid, testemunha-estrela do Golpe dos Estilingues. Ou seja: não está claro se falou ou não, mas parece que teria tentado falar. É isso, pelo menos, que está escrito no pedido e na ordem de prisão. Não existe nenhum entre os 361 artigos do Código Penal Brasileiro que defina o crime de “Tentativa de Falar Com o Pai do Coronel Cid”. 

O que existe, logo no artigo 1º, é a seguinte norma: “Não há crime sem lei anterior que o defina”, da mesma forma como não há pena sem crime. No caso do general, a regra não valeu. É ruim por qualquer lado que se olhe. A PF e o ministro acham que Braga estaria tentando saber o que o coronel Cid tinha falado em sua “delação premiada”. E daí? Isso não é obstruir a Justiça. Na pior de todas as hipóteses, é querer saber alguma coisa sobre aquilo que alguém está falando na polícia a seu respeito — e que os seus advogados estão proibidos de perguntar à autoridade pública, em violação direta ao direito de defesa. Obstrução de Justiça é outra coisa — são atos concretos para impedir que a lei seja aplicada. É um fato que tem de ser descrito e tipificado. 

Não é um desejo, nem uma intenção. A PF, no caso, diz que o general “possivelmente” iria usar o que ouviu do pai do coronel para bloquear a investigação. Mas ele usou ou não usou? E como saber isso, se ninguém sabe sequer se ele falou ou não falou com o tal pai? O mesmo valor tem uma das provas que a polícia passou para os jornalistas e que foi apresentada na mídia como uma bomba de hidrogênio em cima dos golpistas: um texto apreendido entre os papéis de um militar “ligado” ao general com a sugestão de perguntas e respostas que se poderia fazer a respeito do depoimento do coronel Cid. Mais uma vez, a pergunta a ser feita é: “E daí?”

O papel (ou o “arquivo”, como se diz) é um exercício de imaginação, ou uma lista de hipóteses. Que crime poderia ser este? E o que o general Braga tem a ver com a história, se não foi ele quem escreveu nem as perguntas nem as respostas? Tudo o que a PF diz para a mídia publicar na embalagem de “documento”, ou “prova documental” é deste mesmo nível de qualidade. Não é documento. Não é prova. É apenas um conjunto de frases e palavras, frequentemente de autoria desconhecida e com significado à beira do incompreensível. O que deixa jornalistas, policiais e o ministro Moraes mais agitados é a “minuta [ou as minutas; pode haver mais de uma] do golpe” — considerações, que jamais se transformaram em ato oficial, para solicitar ao Congresso o estado de emergência previsto na Constituição.

Há também, entre os motivos para a prisão do general Braga, a menção de uma extraordinária “sacola de vinho” que, aparentemente, conteria dinheiro para financiar o golpe que nunca foi dado. Dinheiro vivo, no Brasil das elites civilizadas, em geral vem na cueca, ou em malas de viagem. Sempre que é apreendido pela polícia, é contado nota por nota, fotografado e apresentado à imprensa. Onde estaria o “dinheiro da sacola de vinho”? Não se sabe. A polícia não achou; os “kids pretos” devem ter gastado tudo antes. E a sacola? Também não acharam. Quem deu o dinheiro a quem, quando e onde? Não se sabe. Quanto dinheiro havia na sacola? Não se sabe. Nada se sabe. Que polícia séria do planeta poria no papel uma coisa dessas? Que tipo de mídia poderia passar isso adiante como verdade, sem fazer uma única pergunta como as sugeridas acima? Que juiz do mundo democrático aceitaria um pedido de prisão com essa história da sacola de vinho que não aparece? 

Resposta: a polícia brasileira, a imprensa brasileira e o juiz Moraes, da “suprema corte” brasileira. É um daqueles clássicos do almanaque de piadas dos advogados criminalistas: o inquérito onde a testemunha, à noite, viu um carro azul, mas que talvez fosse verde, podendo também ser amarelo — sem excluir a possibilidade de que fosse vermelho. 

Há ainda, na moldura mais ampla da prisão do general Braga, o golpista que não pôde cumprir a sua missão porque o táxi atrasou, um tanque da Marinha que ninguém viu e uma maçaroca de xingatório impotente de torcida que perdeu o jogo. Talvez mais que tudo, e aí já no perigoso terreno da galhofa, haja o projeto para envenenar Lula. Envenenar por que, se eles tinham armas privativas das Forças Armadas à sua disposição? Envenenar com o quê — formicida? Envenenar quando? A suspeita da PF e da imprensa é que seria durante uma internação hospitalar de Lula. E enquanto ele não fosse hospitalizado?

É possível que o ministro Moraes e seus colegas de STF, na hipótese de lerem algum dia este artigo, tenham um belo acesso de riso. “Santo Deus, quanta bobagem junta”, poderiam dizer uns para os outros. “Será que esse cara ainda não percebeu que o nosso negócio é justamente este — dizer que qualquer coisa é prova, porque não há ninguém acima da gente para dizer que não é? Tenha dó, vai.” Os ministros, para falar sinceramente, talvez tivessem todos os motivos para morrerem de rir. Quem vai ter razão dizendo que o triângulo tem três lados, se o STF disser que tem sete? 

Decisão da Justiça não se discute, se cumpre. Enquanto isso, o general Braga, as provas, o direito de defesa, as centenas de cidadãos condenados a até 17 anos de prisão, ou à espera de sentença, por participarem de um quebra-quebra desarmado, os golpistas que não deram golpe, a cabeleireira do batom inflamável e outros tantos que se arrumem. A Justiça brasileira de hoje não aplica a lei que está escrita, nem precisa da formalidade das provas para combater a direita. Isso é coisa de um passado conservador, totalitário, fascista, excludente e explorador dos pobres. Ela decide, isto, sim, o que é “bom” para o Brasil, a sociedade e o processo civilizatório. 

J.R. Guzzo, Revista Oeste















PUBLICADAEMhttps://rota2014.blogspot.com/2024/12/o-linchamento-do-general-por-jr-guzzo.html

0 comments:

Postar um comentário

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More