por Bruno Garschagen
É ingenuidade achar que, dado o seu histórico, a solução política para o país esteja no aprimoramento do presidencialismo — tarefa já tentada e fracassada
O Poder Moderador foi criação magistral de alguns dos construtores do Império Brasileiro que elaboraram o texto de nossa primeira Constituição, a de 1824. Das sete que tivemos até agora, foi a mais longeva, a melhor em forma e conteúdo. Agregava, como nenhuma outra, o espírito de conciliação do século 19, institucionalizando elementos conservadores e liberais, protegendo a vida, a liberdade, a propriedade.
Mas desde sua revogação com a Constituição de 1891, que legitimou o golpe militar que derrubou a Monarquia em 15 de novembro de 1889, o Poder Moderador vem sendo invocado da forma mais equivocada possível. Na ausência do imperador, durante décadas, nas Forças Armadas foram depositadas as esperanças de que cumprissem esse papel; recentemente, a fé política se voltou ao Supremo Tribunal Federal.
Influenciado pela tese de Benjamin Constant proposta em seu livro Princípios Políticos (1814), o Poder Moderador era, junto com Executivo, Legislativo e Judiciário, um dos quatro poderes estabelecidos na Constituição de 1824. Foi definido no artigo 98 como “a chave de toda a organização política”. Seu único detentor era o imperador, o chefe supremo da nação, e seu primeiro representante, a quem caberia, exclusivamente, velar “sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”.
A Constituição de 1824 era inteligente, funcional, liberal, e mostrou-se eficiente mesmo durante o período turbulento da Regência
Somente o imperador poderia exercer essa missão porque, embora fosse detentor de um dos quatro poderes constitucionais, estava acima de todos os poderes e das disputas eleitorais e partidárias, e assim poderia ser o agente de equilíbrio e harmonia entre eles e seus integrantes. Era precisamente o que defendia Constant: o Poder Moderador atuaria para preservar a estabilidade também ao prevenir o conflito entre os poderes, preservando a ordem e os direitos naturais dos brasileiros. Isso só era possível, repito, pela atuação de um agente imparcial.
Porque era documento que não pretendia regular as várias dimensões da vida em sociedade, a exemplo das seis constituições que lhe sucederam, a Constituição de 1824 — e não só o Poder Moderador — deu impulso ao desenvolvimento da atividade parlamentar, que foi sendo aprimorada pela experiência prática, por tentativa e erro, e não em razão do que estava estabelecido e delimitado pela Carta Magna. Era uma Constituição tão inteligente, funcional, liberal, que não foi posta em causa nem mesmo durante o período turbulento da Regência. O mesmo ocorreu com o Poder Moderador, que titubeou no 1º, mas desabrochou no 2º Reinado.
Graças ao Poder Moderador no 2º Reinado foi possível aprimorar a prática política e garantir ao país estabilidade e organização política, paz social (mais de 40 anos sem conflitos internos), liberdades civil, comercial e de expressão, alternância de poder entre os partidos Conservador (apelidado de Saquarema) e Liberal (apelidado de Luzia).
Algumas das melhores cabeças de nosso Império teorizaram a respeito do Poder Moderador, homens como marquês de São Vicente, Brás Florentino Henriques de Sousa, visconde de Uruguai. O que disseram foi resumido pelo historiador João Camilo de Oliveira Torres em seu livro Interpretação da Realidade Brasileira:
- “O Poder Moderador não governa, […] não lhe cabendo tomar decisões sobre fatos concretos, principalmente não lhe cabendo a iniciativa das opções, nem mesmo apresentar as opções, a não ser quando as razões nacionais, os Objetivos Nacionais Permanentes, estão em jogo”.
- “O Poder Moderador é um poder efetivo, com meios de atuar (que a Constituição fixou geralmente bem), destinado a conter em seus justos limites os poderes ‘ativos’ e principalmente considerar que a paixão política pode conduzir a excessos de todo o gênero. Uma das razões de ser do princípio do Poder Moderador está no fato de que, sendo o poder que, não tendo iniciativa, sanciona ou veta as opções, constitui uma instituição destinada a impedir as calamidades políticas administrativas de que temos tido tantos exemplos modernamente em nosso país. Ao Poder Moderador compete impedir os males, impedir a possibilidade de males, não os castigar.”
Por não ser uma instituição imparcial, o Poder Executivo seria incapaz de exercer a moderação
Esse instituto, como já dito, foi revogado pela Constituição de 1891. O fato paradoxal foi a tentativa de sua restituição na Constituição de 1934 como um remédio para o caos criado pela República: estado de sítio, intervenções nos Estados, revoltas, sublevações, caudilhismo, coronelismo, fraudes nas eleições.
Na Assembleia Constituinte de 1933, o político gaúcho Borges de Medeiros, herdeiro do autoritarismo positivista de Júlio de Castilhos, grande influência e padrinho político de Getúlio Vargas, chegou a propor a instituição do Poder Moderador no presidencialismo republicano. É de autoria do professor Christian Edward Cyril Lynch um interessante estudo de direito comparado sobre “O Poder Moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto Borges de Medeiros de 1933”.
A proposta de Medeiros pervertia o espírito de conciliação do Poder Moderador original para atribuir mais poderes ao poder Executivo federal, que não era instituição imparcial e, portanto, seria incapaz de realizar a moderação.
A sugestão não foi acolhida pelos constituintes, a história seguiu seu curso, o caos republicano continuou e os breves períodos de ordem foram justamente aqueles sucedidos por intervenções militares e governos autoritários. O corolário desse drama foi criar no imaginário a ideia deturpada segundo a qual as Forças Armadas deveriam ter um papel político e ser o agente de moderação, como mostram estudos do historiador José Murilo de Carvalho, e que intervenções são uma solução, não um problema.
Como está no mesmo plano hierárquico, o STF não pode colocar-se acima dos demais poderes
Se até recentemente o papel de moderador era forçosamente atribuído apenas às Forças Armadas, equívoco que não poupou sequer intelectuais como o próprio João Camilo de Oliveira Torres, de uns anos para cá, o STF passou a ser a fonte de esperança por gente muito menos qualificada intelectualmente.
Mesmo que por analogia — analogia carente de criatividade e de sensatez jurídica —, não se pode atribuir ao STF a função de Poder Moderador, pois, estando no mesmo plano hierárquico, não pode se colocar (nem ser colocado) acima dos demais poderes. As recentes decisões dos ministros da Corte são uma pequena amostra de quão perigoso seria se ao Supremo fosse concedido tal poder.
É tão incabível quanto considerar que a moderação deveria ser delegada às Forças Armadas. Não sendo instituição política, não tendo poder político nem legitimidade para tal, Exército, Marinha e Aeronáutica não detêm sequer o perfil para ser o agente de conciliação e prevenção de conflitos entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Além disso, pela Constituição de 1988 (art. 84, XIII), o presidente da República exerce o comando supremo das Forças Armadas, algo que a Constituição de 1824 também resolveu ao delegar esse comando ao imperador. As Forças Armadas eram, portanto, um instrumento (não um agente) da moderação e, como observou João Camilo, “estiveram, sempre, ao lado do imperador em defesa da Constituição”.
Há sinais evidentes de que o presidencialismo republicano fracassou, e muitos de seus defensores não se dão conta disso
Se as Forças Armadas são utilizadas pelo presidente para exercer esse papel, serão instrumento de um golpe; se elas próprias decidirem exercê-lo, serão o agente do golpe. E, desde o golpe militar que instaurou pela força o presidencialismo republicano, as Forças Armadas passaram a ter força política. E todas as vezes em que atuaram politicamente (1889, 1930, 1937, 1945, 1964) provocaram muito mais danos do que produziram benefícios.
A invocação do Poder Moderador e as inadequadas tentativas de atribuí-lo a um dos três poderes ou às Forças Armadas constituem um dos tantos sinais evidentes de que o presidencialismo republicano fracassou, e muitos de seus defensores nem sequer se dão conta disso.
É ingenuidade achar que, dado seu histórico, a solução política para o país esteja no aprimoramento do presidencialismo — tarefa já tentada e fracassada. Os conflitos atuais entre os três poderes são apenas a face aparente do problema resultante do casamento da República com os homens ocos que controlam a política.
O caminho institucional para a solução está na restauração da Monarquia e da Constituição de 1824 (devidamente atualizada) com imperador, Poder Moderador, Gabinete de Ministros, Câmara dos Deputados, Senado vitalício e Supremo, e um sistema eleitoral ancorado no voto distrital. Sem isso, continuaremos a enfrentar instabilidades institucionais e crises políticas e econômicas sem termos sequer os instrumentos legais para resolvê-las com rapidez e inteligência.
Se querem um Poder Moderador, que se restaure a Monarquia Constitucional. Não há outro meio, não há outro caminho.
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Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).
Revista Oeste
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