Jornalista Andrade Junior

sábado, 27 de junho de 2020

Augusto Nunes e 'Os democratas de manifesto'

AUGUSTO NUNES



Genuínos defensores da democracia praticam com naturalidade o convívio dos contrários e não tratam como inimigos quem tem opiniões divergentes
Há menos de um mês, no meio do debate sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro, chegou aos participantes uma sopa de porcentagens do Datafolha saída do forno. Segundo a pesquisa, 43% dos brasileiros achavam o desempenho do presidente da República “ruim” ou “péssimo”. Outros 33% o consideravam “bom” ou “ótimo”. Para 22%, a performance era “regular”. Os 2% restantes preferiram não opinar. “Está claro que 33% não se convence, se vence”, comentou um espectador.

A observação incendiou a imaginação de Eduardo Moreira, uma sumidade polivalente que já vinha animando a conversa com o seu inesgotável repertório de soluções para tudo que nada resolvem.

O currículo resumido informa que Moreira é economista, empresário, engenheiro, palestrante, escritor, apresentador, roteirista, ex-banqueiro e especialista num tipo de adestramento de cavalos que trata com brandura os animais. Ele garante que foi condecorado por Elizabeth II pela façanha zoológica. Não é pouca coisa.
“É verdade, a gente nunca fala dos 70%!”, começou a sequência de exclamações. “Setenta por cento no Brasil é gente pra caramba! Os 70% estão com medo! Eles nunca conseguem se perceber como 70%! Os 30% se acham 70% e os 70% se acham 30%!” Para chegar a esse índice redondo, Moreira submeteu a uma selvagem sessão de tortura a lógica e a sensatez — e assassinou a estatística com requintes de perversidade.

Primeiro, ele somou aos insatisfeitos ou indignados com o governo (43%) os 22% que o consideram regular — palavra que no mundo das pesquisas significa algo como “mais ou menos” — e chegou a 65%. Depois, anexou os 2% que não têm opinião formada. O índice subiu para 67%. Em seguida, fez a margem de erro (2% para mais ou para menos) oscilar inteira para o lado dos inimigos de Bolsonaro. O índice pulou para 69%.

De onde veio o ponto porcentual que faltava para chegar aos cabalísticos 70%, isso ninguém sabe. Parece pouco. Mas, como diria Moreira, mais de 1 milhão de eleitores é gente pra caramba.
Com 10 mil signatários, o alto-comando do Estamos Juntos decidiu que reeditava a campanha das Diretas-Já
C
A vigarice estatística apressou o parto do “Somos70PorCentro”, uma fantasia que enxerga o Brasil dividido em duas partes. Os democratas irretocáveis são 70%. O resto é um ajuntamento formado por fascistas, neofascistas, criptofascistas, simpatizantes do fascismo e inocentes úteis. Entusiasmado com o próprio falatório, Moreira anunciou o nascimento da frente ampla que impedirá a implantação de uma ditadura liderada por um Mussolini-2020 aqui fabricado.

No dia seguinte, descobriu que chegou tarde. Os gerentes de um movimento igual mas diferente, batizado de Estamos Juntos, já colhia assinaturas para um manifesto que prometeria defender a qualquer preço a democracia ameaçada pelo presidente eleito em outubro de 2018. A publicação do documento numa página inteira de jornal confirmou que todos os subscritores estavam incluídos nos 70% de Eduardo Moreira. Por que não fundir os dois movimentos numa única frente ampla? Talvez porque no “Somos70porcento” entra quem quiser. No Estamos Juntos, amplitude tem limite.
O que não tem limite é a ambição dos donos do manifesto. Assim que os signatários ultrapassaram a marca dos 10 mil, o alto-comando decidiu que estava na fase final dos trabalhos de parto uma reedição da campanha das Diretas-Já, o maior movimento da massas da história do Brasil, que entre o início de 1983 e meados de 1984 exigiu em comícios monumentais a volta da escolha nas urnas do presidente da República. Talvez tenha sido por isso que duas tribos da mesma etnia dos 70% acamparam em territórios próprios.

Os filiados à OAB, cujo presidente é escolhido por um colégio eleitoral, agruparam-se no “Basta”. Foi o que fizeram os líderes das torcidas organizadas do futebol paulista, sustentadas por cartolas que chegam ao poder e lá permanecem percorrendo atalhos que passam ao largo da opinião das arquibancadas. Coerentemente, os torcedores organizados só se juntaram aos demais democratas num ato de protesto cujos participantes caberiam em meia dúzia de camarotes do Itaquerão.
É preciso muita ousadia para enxergar no Brasil uma ditadura em gestação e uma democracia popular em Cuba

Como numa casa noturna que está bombando, são os donos do Estamos Juntos que decidem quem entra e quem fica fora. Alguns oficiais graduados são órfãos do Partido Comunista Brasileiro, o que garante vaga em qualquer manifesto aos veteranos de guerra que sobreviveram à morte do Partidão. Todos passaram boa parte da vida venerando a ditadura do proletariado, que jamais rimou com democracia, e celebrando com a arrogância de ministro do Supremo os encantos e vantagens do regime de partido único, uma obscenidade que só pode vicejar nos escombros do Estado de Direito.

Agora juram que foram democratas desde sempre, só que em segredo. Derramaram lágrimas (furtivas) pelo camarada Leon Trotsky e por outros milhões de mortos por ordem de Josef Stalin. Repudiaram (sem gente por perto) o pacto de não agressão que selou a aliança obscena entre o Guia Genial dos Povos e Adolf Hitler. Lamentaram (em silêncio) a invasão da antiga Tchecoslováquia por tropas do Exército Vermelho. E derramaram lágrimas de esguicho (trancados num quarto) por todas as incontáveis contribuições da União Soviética à História Universal da Infâmia.
A coragem que lhes faltou em tempos sombrios parece agora sobrar aos sinuelos dos democratas de manifesto. É preciso muita ousadia para enxergar no Brasil uma ditadura em gestação e uma democracia popular em Cuba, que sepultou a eleição direta dos governantes em 1º de janeiro de 1959.

É preciso muita audácia para abrir as portas do Estamos Juntos a bandidos juramentados, casos de polícia ambulantes, dinossauros do PCdoB, estupradores do direito de propriedade, saqueadores de estatais, estupradores da Constituição e, ao mesmo tempo, proibir a entrada de figuras que não gozam da simpatia de cabeças estacionadas em séculos passados.

José Dirceu, Boulos, Stédile, Manuela? Isso pode. Sergio Moro? Esse não pode de jeito nenhum. Embora não tenha solicitado ingresso, Moro foi publicamente vetado. Não por ter sido ministro de Bolsonaro: se fosse por isso, Luiz Henrique Mandetta não encontraria espaço no desfile de assinaturas.

Moro foi barrado por ser o símbolo da Lava Jato, operação que desmontou o maior esquema corrupto de todos os tempos. E, sobretudo, porque sempre será o juiz que mandou Lula para a cadeia por lavagem de dinheiro e corrupção.
O show de sabujice não pode parar: “Queira ou não queira, Lula faz parte dos 70%”
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Talvez por ter esquecido que não pode andar com as próprias pernas, até porque poste não tem membros, Fernando Haddad não pediu a bênção do fabricante antes de aderir ao Estamos Juntos. Tanto Haddad quanto os demais devotos da seita foram prontamente enquadrados por seu único deus.

Lula avisou que não é maria vai com as outras e que não rabisca um X em manifestos assinados por Fernando Henrique Cardoso. (No faroeste à brasileira, é o bandido solto da gaiola pelo juiz amigo quem recusa a companhia de gente sem contas a acertar com a Justiça.)

Mas o show de sabujice não pode parar: “Queira ou não queira, Lula faz parte dos 70%”, miou Eduardo Moreira, no momento disposto a tudo para fundir seu “Somos 70porcento” com o Estamos Juntos.
Os movimentos recém-nascidos começam a morrer de velhice. Democratas genuínos fazem o contrário do que andam fazendo os pastores da intolerância disfarçados de democratas de manifesto. Praticam com naturalidade o convívio dos contrários. Sabem que não existe frente ampla formada por um rebanho só. Não tratam como inimigo quem tem opiniões divergentes.

Compreendem que nenhum regime é democrático se existirem presos políticos, e que oposicionistas não devem ser encarcerados, mas vencidos em eleições limpas. Admitem que todos são iguais perante a lei, e que ninguém é mais igual que os outros. Constatada a derrota eleitoral, preparam-se para a próxima disputa. Entendem que extremistas de esquerda ou de direita são gêmeos com defeitos de fabricação. E aprendem ainda no berçário que não há valor maior que a liberdade.

Revista Oeste

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