Jornalista Andrade Junior

sábado, 27 de junho de 2020

"Quem manda nas redes?",

por Selma Santa Cruz

Nos filmes de animação da Disney, trolls são figuras cativantes, apesar da aparência grotesca. Inspirados num personagem do folclore escandinavo, eles conquistaram milhões de crianças pelo mundo com seu corpanzil verde e desajeitado. Já quando empregado em relação às mídias sociais, o termo gera controvérsia. Em plataformas como Twitter e o popularíssimo Tik Tok, site de publicação de vídeos de origem chinesa que virou febre entre adolescentes, ele designa agitadores que se dedicam a ofender ou desmoralizar quem lhes desagrada. Como os adolescentes que ganharam notoriedade, dias atrás, por se mobilizarem de forma inusitada para tentar esvaziar um comício do presidente norte-americano Donald Trump.
A expectativa dos organizadores do evento, realizado na cidade de Tulsa, em Oklahoma, era reunir até 1 milhão de pessoas, estimativa baseada na quantidade de reservas de ingressos feitas por telefone. Para espanto geral, no entanto, o estádio, que comporta 19 mil lugares, nem sequer lotou, e as fileiras de cadeiras vazias registradas pelas câmeras de televisão causaram frustração na Casa Branca. Como explicar tamanho descompasso?
Para os responsáveis pela campanha, o risco de protestos violentos e o medo de aglomerações em local fechado, num momento em que os surtos da covid-19 recrudescem no país, teriam afastado os partidários do presidente. Mas o revés acabou trazendo a público o estratagema usado por uma insólita combinação de ativistas, trolls adolescentes e fanáticos pelo gênero musical sul-coreano K-pop, que compõem uma das comunidades mais ativas do Tik Tok. Eles alegam ter tirado partido do enorme potencial de viralização de mensagens no site, cuja audiência global supera 800 milhões de usuários, para provocar uma avalanche de falsas reservas de ingresso para o comício.
A “lei das fake news” é um arremedo de legislação articulado às pressas por políticos oportunistas

“Esquerdistas e trolls que comemoram, achando que tiveram algum impacto no comparecimento, não sabem do que estão falando”, ponderou o responsável pela campanha à reeleição de Trump, Brad Pascale. Mas o episódio ilustra até que ponto as mídias sociais se tornaram o novo campo preferencial de combate político. E quanto este ainda é um território relativamente mal conhecido, no qual novas táticas de militância e guerrilha digital despontam a cada momento, tornando obsoleto o marketing político tradicional e impondo desafios inéditos às democracias.
É nesse contexto que convém avaliar as tentativas em curso para censurar e criminalizar manifestações políticas na internet, como a recente investida do Supremo Tribunal Federal contra blogueiros e partidários do presidente Jair Bolsonaro por suas atividades on-line. Além do indecoroso Projeto de Lei nº 2630 — conhecido como “lei das fake news”, um arremedo de legislação articulado às pressas por políticos oportunistas, em plena pandemia, para tentar impedir um debate amplo e qualificado, como requer um tema dessa complexidade.
Para se ter ideia do nível da proposta, que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, tentou aprovar a toque de caixa nesta quinta-feira, dia 25, um dos artigos previstos no projeto original estipulava multa de até R$ 10 milhões para quem degradasse a imagem de candidatos a cargos eletivos. O disparate pegou tão mal que o relator da proposta, senador Angelo Coronel, do PSD da Bahia, viu-se constrangido a substituir esse artigo, estipulando em seu lugar multa de até R$ 1 milhão para candidatos que ridicularizarem o adversário no programa eleitoral gratuito. O que, convenhamos, em nada melhorou o texto.
A Corte Constitucional da França rejeitou a “lei contra discursos de ódio”

Ninguém com um mínimo de bom senso pode negar a necessidade de punição a crimes cometidos no ambiente digital. Ou de atualizar a legislação para incorporar essas novas modalidades de bandidagem. O perigo, contudo, está nas tentativas de incluir na mesma categoria ilegalidades patentes, já tipificadas no Código Penal, e manifestações políticas passíveis de desagradar aos ocupantes do poder. Sobretudo no caso da censura às fake news, levando-se em conta quanto a conceituação do que é verdade pode ser elástica, dependendo dos interesses e da ideologia de quem decide. E sobretudo os riscos à liberdade de expressão que esse tipo de iniciativa representa.
Foi justamente em defesa da liberdade de expressão, por sinal, que a Corte Constitucional da França, um dos países mais ciosos da inviolabilidade dos direitos civis, rejeitou, na semana passada, uma lei similar recém-aprovada pelo Parlamento e conhecida como “lei contra discursos de ódio”. Como no exemplo brasileiro, a proposta pretendia delegar a “mediadores” contratados por plataformas digitais, como Facebook, Twitter e similares, o poder de excluir informações e postagens consideradas inverídicas ou ofensivas.
Para os constitucionalistas franceses, a lei legalizaria a censura. Configuraria ainda uma injustificável “terceirização” da aplicação da Justiça, já que a competência de julgar a existência de crimes é prerrogativa do Judiciário. Indo além, os juízes apontaram o óbvio risco de exageros: para que seus empregadores não incorressem nas pesadas multas previstas em caso de descumprimento da lei, os mediadores tenderiam, é claro, a censurar qualquer postagem ligeiramente suscetível de configurar “discurso  de ódio”.
O suposto poder do ativismo on-line para desequilibrar disputas políticas ainda não está comprovado

Entende-se que a migração das disputas de poder dos ambientes controlados de comícios e mídias de massa para as redes sociais, espaços por natureza mais democráticos e libertários, cause apreensão. Mas vale lembrar que calúnias, injúrias, manipulação do eleitorado e jogo sujo na política não foram inventados pela internet. Particularmente no Brasil, com nossa longa e notória tradição de compra de votos e cooptação de meios de comunicação para influenciar indevidamente o resultado de eleições.
Cabe considerar também que o suposto poder do ativismo on-line para desequilibrar disputas políticas ainda não está suficientemente comprovado, em que pesem as costumeiras alegações nesse sentido. Como nos esforços para convencer a opinião pública de que o presidente Jair Bolsonaro teria sido eleito por disparos robotizados de mensagens no WhastsApp. Uma hipótese evidentemente facciosa, que ignora o antagonismo de visões políticas em confronto naquele momento e subestima a capacidade do eleitorado de votar segundo suas convicções.
O fato é que esse suposto poder do ativismo on-line de desequilibrar radicalmente a relação de forças políticas vem sendo crescentemente questionado por seguidas pesquisas e estudos. Em parte, devido a dois fenômenos que sugerem que influenciar as pessoas no ambiente digital talvez seja mais difícil do que se supõe. Um deles, o chamado filter bubble (filtro de bolha), leva em conta que, ao acessar informações na internet, a maioria dos indivíduos fica à mercê dos algoritmos dos softwares de busca e aplicativos, os quais sempre oferecem novos conteúdos em consonância com o histórico de busca ou consumo de cada um. Ou seja, reforçando, e não modificando, posições consolidadas.
A tendência dos usuários das redes é interagir com pessoas e organizações que reforcem suas opiniões

Outro fenômeno que relativizaria o poder da militância nas redes, mesmo com o recurso a robôs multiplicadores de mensagens, seria o conhecido como eco chambers, ou câmaras de eco — analogia a ambientes fechados, onde o som reverbera, para se referir à propensão das pessoas a frequentar sites ou aplicativos em que encontram indivíduos com ideias e opiniões semelhantes às suas.
Uma das razões para isso seria a tendência humana de evitar o estresse emocional causado pelo confronto com visões que contrariam crenças estabelecidas — a chamada Teoria da Dissonância Cognitiva. Em decorrência, o impulso predominante seria procurar mensagens que reforcem preconcepções, o chamado viés de confirmação. Nessa perspectiva, a atual polarização política não seria provocada de forma direta pela militância digital ou por fake news. Mas por essa tendência dos usuários das redes a interagir com pessoas e organizações que reforcem suas opiniões.
Finalmente, quando se trata de censura, é bom lembrar que nem alguns dos governos mais assumidamente totalitários da história recente, como o da União Soviética e o da Alemanha nazista, conseguiram suprimir de forma completa vozes divergentes. Os dissidentes soviéticos, como se recorda, sempre encontraram meios para fazer com que seus textos chegassem ao Ocidente. E um dos mais belos registros da resistência ao nazismo é a história do casal de operários Otto e Elise Hampel, relatada pelo escritor Hans Fallada, no livro Morrer Sozinho em Berlim. Sem acesso a outras formas de protesto, eles espalhavam bilhetes anônimos contra o regime em lugares públicos da capital alemã. Acabaram identificados, presos e assassinados pela Gestapo, que não teve dificuldade de seguir sua trilha. Hoje, no ambiente intangível da internet, a perseguição a opositores políticos promete ser bem mais complicada.
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Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo e da  revista Veja, na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital, conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em comunicação pela USP e estudante permanente da História.



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