por Fábio Cardoso Machado.
Um dos maiores perigos da criminalização do que uns ou outros consideram fake é que, muitas vezes, não há parâmetros objetivos para aferir com segurança o que é verdadeiro ou falso. Há todo um amplo espaço para divergências, e nesse espaço a certeza nos escapa. Estamos aí no âmbito das opiniões, e qualquer tentativa de controlar juridicamente a conduta de quem se situa nesse âmbito afronta a garantia constitucional da liberdade de expressão.
A rigor, mesmo o erro de fato objetivamente aferível está protegido pela ordem jurídica. Temos, digamos assim, o direito de errar. É evidente que há limites decorrentes da necessidade de proteger a honra e a imagem das pessoas contra a mentira deliberada, a acusação falsa e a agressão injusta. Mas é sempre bom lembrar que esses limites só podem recair sobre o que foi dito, jamais sobre a possibilidade de dizer, pois a Constituição resguarda a liberdade de expressão “independentemente de censura ou licença” e assevera que a manifestação do pensamento e a expressão, sob qualquer forma, “não sofrerão qualquer restrição” (art. 5º, IX , e 220, caput).
Há, portanto, um âmbito de liberdade dentro do qual podemos nos mover, e, certamente, nele se situa tudo que pertence ao domínio do opinável, daquilo que é incerto e passível de razoável divergência.
Esse espaço de liberdade deve, ainda, ser alargado tanto quanto possível para abarcar o direito de se insurgir contra o poder e o seu abuso. É condição para a manutenção de uma ordem democrática de direito que as autoridades estejam sujeitas à crítica pública e à censura popular. Os eventuais excessos e desvios dessas autoridades importam em restrições às nossas liberdades e podem, no limite, comprometer a própria ordem constitucional, já que deixam as instituições republicanas a mercê do uso político, da manipulação e até mesmo do crime. Então convém deixar o povo gritar contra as autoridades, mesmo que, como é natural, haja excessos aqui ou ali. É preferível que as autoridades fiquem sujeitas ao abuso da crítica do que o povo ao abuso do poder.
Em minha opinião, não deve haver nenhuma crítica que um cidadão não possa fazer a uma autoridade e, muito menos, a uma instituição. Dizer, assim, que um tribunal é antidemocrático ou que está sendo usado para fins de perseguição política não pode, jamais, configurar um ilícito. Até porque a imputação de uma ação a uma instituição é uma ficção jurídica que não pode obscurecer o fato de que uma crítica dessa índole só pode, verdadeiramente, ser voltada às pessoas que agem em seu nome.
É evidente que o que muitas pessoas têm dito e defendido acerca do Supremo Tribunal Federal não configura uma insurgência contra a instituição. Está muito claro, para quem queira ver, que a indignação advém do que pessoas de carne e osso têm feito ao abrigo da instituição, e não da existência em si ou da missão constitucional do próprio STF. Se isso é verdade, a mobilização institucional do aparato repressivo do Estado contra os críticos dos ministros configura um uso (ou abuso) da instituição, com o exclusivo objetivo de intimidar os críticos e proteger os criticados. Parece, então, um caso de covardia institucional. Escondem-se, alguns, detrás da instituição, e ainda usam todo o seu poderio para perseguir os detratores.
Isso esclarece um ponto que é da maior relevância. Numa ordem de direito as instituições têm, cada uma, a sua específica missão constitucional. Todas devem se submeter aos princípios daquela ordem e respeitar os limites funcionais que vêm da sua peculiar tarefa institucional. Se isso é assim, a crítica e a indignação contra a autoridade que abusa da instituição, desviando-a de sua missão e levando-a à extrapolação dos seus limites, constitui um importante meio de defesa da própria instituição.
É fundamental resguardar ou, no mínimo, tolerar as manifestações de indignação que chamam à responsabilidade as pessoas que exercem a autoridade, a fim de constrangê-las a respeitar os limites do poder que têm e proteger as instituições que representam.
O caso do STF é, quanto a isso, exemplar. A instituição encarregada pela Constituição de proteger o império do direito e as nossas liberdades está sendo usada, contra o direito, para coibir o exercício de algumas dessas liberdades. Um tribunal que deveria assegurar o respeito incondicional ao devido processo legal, ao juiz natural e à imparcialidade do juiz, rompe com isso tudo e instaura uma dinâmica processual que contraria a natureza mesma do que é ser juiz (um terceiro imparcial que julga em conformidade ao direito, sem olhar o próprio interesse). Ir contra um juiz que resvala em sua atuação e dá ensejo a isso não é ir contra o tribunal. É ir em defesa do direito e da instituição, para a preservação das suas competências constitucionais e o restabelecimento da normalidade da sua atuação.
E isso tudo vale para os dois lados. Permitir a perseguição institucional covarde de quem grita contra os excessos das autoridades é o mesmo que dar a todas elas um salvo-conduto para retaliar, com o poder que têm, todos aqueles que, imoderadamente ou não, se levantam contra o abuso e o arbítrio.
Hoje mesmo, tive notícia de dois diferentes manifestos de juristas. Um deles acusa o Presidente da República de usar o mandato para arruinar os alicerces do sistema democrático, atentando contra os demais poderes e o próprio Estado de Direito. Chega ao extremo de qualificar de “genocida” a sua atuação. O outro manifesto, pelo lado dos conservadores, defende a responsabilização penal de todos que, como aqueles, exacerbam no linguajar e chamam o Presidente de genocida, assassino, miliciano, terrorista, nazista, fascista etc.
Creio que os fatos conhecidos não suportam essas destemperadas acusações. As palavras, afinal, têm sentido e não podem desconsiderar os fatos. Mas tenho que reconhecer que não passam de gritos indignados de pessoas que, desprovidas do poder de um ministro ou de um presidente, acabam por exagerar nas palavras para extrapolar a revolta e se fazer ouvir como podem, em meio a uma tremenda gritaria.
Pela forma como vejo as coisas, alguns ministros do STF querem tirar dos outros a liberdade de dizer coisas que eles próprios se dão o direito de dizer, e existe sim toda uma movimentação deliberada para levar-nos a uma situação-limite e provocar a reação do Presidente, emplacando as acusações antecipadas e, com base nelas ou em qualquer outra que estiver à mão, mandá-lo para casa ou para a prisão. Mas essa é a minha opinião acerca dos fatos, porque é a opinião que me parece corresponder à verdade. Quero poder expressá-la ou descartá-la sem medo da polícia. E quero que outros tenham também as suas e possam expressá-las, com fúria e indignação se for o caso. Creio que essa é a atitude que deveriam ter todos que repudiam a perseguição política e a covardia institucional e, realmente, se preocupam com as liberdades, o império do direito e a preservação das instituições.
* O autor é doutor em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UNISINOS. Professor da Escola de Direito da PUCRS. Advogado em Porto Alegre.
PUBLICADOEMhttp://www.puggina.org/artigo/convidados/covardia-institucional-contra-a-liberdade-de/17116
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