Jornalista Andrade Junior

sábado, 6 de junho de 2020

"A apoteose dos mascarados",

 por Guilherme Fiuza

Você fez muito bem em ficar trancado em casa esse tempo todo. Você é consciente e não iria botar vidas em risco. Vieram notícias de que as populações estão adoecendo sob o isolamento social, e você fez muito bem em ignorá-las. Se a maioria dos hospitalizados em Nova York, a capital da pandemia, veio do confinamento, isso não é problema seu. Te mandaram ficar em casa, então você ficará, até te mandarem sair. Você tem consciência social.
Seu vizinho disse que uma caminhada ao ar livre, guardando as distâncias recomendadas, seria saudável — e até aumentaria a imunidade. Mas você ficou firme onde te mandaram ficar, e acusou seu vizinho de irresponsável. Aí, quando a polícia desceu o sarrafo na mulher dele e a jogou dentro de um camburão, porque ela estava caminhando no calçadão, você estufou o peito e teve a certeza de que estava com a razão.
Aliás, é sobre isso que queremos falar com você. Não sobre ter razão. Sobre descer o sarrafo. É importante que agora você saia de casa. Sim, é um pouco confuso, mas você vai entender. Aquelas pessoas de preto que estão pelas ruas descendo o sarrafo em quem veem pela frente, tacando fogo e quebrando tudo com paus e pedras, estão lutando contra o fascismo. Elas precisam de seu apoio — e você, que já demonstrou quanto é consciente, não vai ficar acovardado em seu canto.
Primeiro vamos sair quebrando tudo para salvar o mundo do fascismo, depois voltamos ao isolamento

Contamos com você. Não se preocupe, a patrulha intelectual não vai incomodá-lo. Nos Estados Unidos, aqueles astros de Hollywood que mandavam todo mundo ficar em casa (“estamos de olho”, eles diziam), agora estão chamando todos para a rua. E quem não atender pode até ser considerado complacente com a violência racista.
É bem verdade que os antifascistas e a multidão que os acompanha não estão poupando negros e pobres de sua sanha destrutiva — e o irmão de George Floyd pediu paz em respeito à sua memória —, mas isso é um detalhe na luta por uma causa maior. Que causa? Ora, não venha com pergunta difícil numa hora dessas. Cale a boca e se jogue na multidão. Não se esqueça de botar a máscara.
O quê? Você quer saber se máscara é suficiente para evitar o contágio numa aglomeração? Pergunta idiota… Quem falou de contágio? Máscara é uniforme de antifascista. No meio da pandemia pega até bem, é verdade. Mas não vamos misturar os assuntos. Primeiro vamos sair em bando quebrando tudo para salvar o mundo do fascismo, depois voltamos a pregar o isolamento social. Uma ética de cada vez, senão confunde.
Antes de jogar pedras em vitrines, verifique com atenção as lojas que já foram quebradas pelo lockdown

É normal que você fique preocupado com o prolongamento da pandemia. Mas fique tranquilo: você ainda terá muito tempo para se apavorar. O pico ainda nem chegou. Ele fica logo depois do arco-íris, então ainda tem chão até lá. Enquanto isso, nessas suas andanças com os antifascistas, não destrua tudo sem critério. Verifique com atenção as lojas que já foram quebradas pelo lockdown, para não gastar pedra e gasolina à toa.
Se as coisas correrem bem e não houver acidente de percurso, até o fim do ano estará tudo quebrado. Mas isso não significa que você deverá sair de casa. Aguarde instruções. Até porque agora você já se acostumou mesmo com essa vida de merda, que é uma vida linda quando você pensa na contribuição que está dando para um bem maior. E a compreensão de que sua decadência vale a pena será recompensada: a esmola estatal há de chegar aos que souberem esperar.

Revista Oeste



















publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2020/06/a-apoteose-dos-mascarados-por-guilherme.html

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