José Nêumanne:
Os 20 milhões de itens expostos ao público, objetos de pesquisa e
testemunhas à mão da memória e da História do Brasil ainda ardiam no
incêndio que devastou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, por não
haver água nos hidrantes do prédio, e vários oportunistas já vinham à
tona para se aproveitarem da tragédia.
O esqueleto de Luzia, a mulher mais antiga do continente, resistente a
12 mil anos de intempéries, era apenas uma imagem virtual quando os
repórteres dos telejornais, enfrentando a desinformação absoluta com a
necessidade de falar alguma coisa, noticiaram que a polícia terá de
descobrir e revelar se o incêndio foi acidental ou criminoso. Truísmo é
pouco para definir essa platitude. Minhas senhoras, meus senhores, o que
se assistiu na noite de domingo passado foi ao assassinato sem piedade
de milhares de anos da História do País e da humanidade pelas castas que
dilapidam há séculos o patrimônio público. A documentação do registro
da passagem do mamífero bípede, impropriamente definido como racional, e
da identidade nacional de uma pretensa civilização, instalada nestes
tristes trópicos em substituição à barbárie dos silvícolas, anterior a
ela, virou cinzas molhadas pelos jatos impotentes de uma (!) escada de
bombeiros jorrando água suficiente para apagar uma fogueira junina, se
muito.
A primeira instituição científica nacional, fundada há 200 anos por dom
João VI, o rei fujão de Portugal, sucumbiu a descaso, insensibilidade,
estupidez, incompetência, desídia e rapina de sórdidas castas elitistas
de políticos ambiciosos, gestores públicos irresponsáveis e intelectuais
militantes.
Os acadêmicos José Sarney e Fernando Henrique, o breve Itamar Franco, os
populistas Lula da Silva e Dilma Rousseff e os oportunistas Fernando
Collor e Michel Temer não deram a museu algum um segundo de atenção, só
usada para ludibriar eleitores e comprar congressistas para se reeleger
ou escapar de impeachment, fugir de inquéritos ou prorrogar prerrogativa
de foro.
Ora, direis, museu não dá voto. Aliás, é difícil encontrar algo de
interesse público que dê votos a quem os disputa na arena cada vez menos
ética da política brasileira. Votos se vendem e se compram com vil
metal, empregos privilegiados na estroina e corrompida máquina pública
nacional e também ideologias generosas somente na aparência. A gestão do
Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, por exemplo, cabe à Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cuja administração é compartilhada
por partidos da extrema esquerda sem representatividade popular, PSOL e
PCdoB, em aliança com representantes da elite partidária que dá as
cartas na República, embora se denomine como “dos Trabalhadores”.
A cúpula dos três Poderes, a intelligentsia acadêmica e, pasme, os
responsáveis diretos pela indigência da instituição que ardeu choram e
se lamuriam pelo destino dela, como gângsteres que levam flores ao
velório das vítimas de sua brutalidade. O presidente Temer divulgou nota
oficial quando ainda faltava água para apagar o fogo: “Incalculável
para o Brasil a perda do acervo do Museu Nacional. Hoje é um dia trágico
para a museologia de nosso país. Foram perdidos duzentos anos de
trabalho, pesquisa e conhecimento. O valor para nossa história não se
pode mensurar, pelos danos ao prédio que abrigou a família real durante o
Império. É um dia triste para todos brasileiros”.
O ministro da Cultura, Sérgio de Sá Leitão, disse que “certamente a
tragédia poderia ter sido evitada”, numa tentativa absurda de transferir
apenas para os governos anteriores as causas do desastre, que, segundo
Walter Neves, antropólogo que pesquisava o esqueleto de Luzia, foi
“anunciado”. A culpa não é apenas do governo atual, é claro, mas é
principalmente deste. Leitão age como um sujeito que cai do décimo
andar, sai caminhando e pergunta aos transeuntes o que aconteceu. E
ninguém foi demitido!
É inútil querer que os incendiários da Quinta da Boa Vista respondam
pela omissão do Estado, que se negou a gastar caraminguás para dotar o
mais antigo museu nacional de chuveirinhos automáticos e extintores de
incêndio que a lei exige de qualquer boteco da periferia. Mas, já que
não se dispuseram a abrir mão dos bilhões do Fundo Partidário para
salvar o museu extinto, que nos poupem de sua hipocrisia. E sendo inútil
exigir que façam algo para a tragédia não se repetir no Arquivo
Nacional e na Biblioteca Nacional, podiam fazer o que sempre fizeram:
esquecer o tema. E nada de reconstruir o prédio para as gerações futuras
se esquecerem de sua participação no crime.
Os candidatos ao posto mais elevado, cujos currículos frustram os
cidadãos carentes de um presidente que evite que a economia arda,
sabotada pela corrupção do PT, de seus aliados, entre os quais o MDB, e
dos falsos oponentes do PSDB, reduziriam o teor de cinismo de suas
campanhas se não chorassem sobre a aguinha que não evitou que o incêndio
se alastrasse.
A Universidade de São Paulo (USP) e o ex-governador do Estado Geraldo
Alckmin devem explicações sobre o cupim que ameaça a integridade das
paredes do Museu do Ipiranga, fechado à visitação desde 2015 e com obras
a serem iniciadas no ano que vem. Ou quando, enfim, não chegarem as
calendas gregas. Fernando Haddad, o estepe de Lula, não terá como
explicar seu silêncio no governo do patrono, quando foi ministro de
Educação, sobre a ominosa situação em que a memória nacional embolora,
apodrece e arde, enquanto os chefões partidários enriquecem
ilicitamente. Nenhum dos dois projetos assinados por Jair Bolsonaro e
aprovados em seus 27 anos na Câmara diz respeito a esse assunto. A
militância ecológica de Marina Silva não inclui uma denúncia da penúria
dos museus, tema também excluído da enxúndia demagógica de Ciro Gomes.
Só restará como testemunho da inépcia deles Bendegó, meteorito que caiu perto de Canudos e resistiu ao fogo feroz.
*JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
O Estado de São Paulo
extraídaderota2014blogspot
0 comments:
Postar um comentário