por Contardo Calligaris Folha de São Paulo
Volto a uma história de minha adolescência. Talvez hoje eu consiga entender plenamente sua significação.
No começo dos anos 1960, na Itália, eu simpatizava com os partidos de esquerda.
Meu pai era um social-democrata sem afiliação partidária, mas ele tinha
participado da resistência ao fascismo, durante os últimos anos da
Segunda Guerra.
Eu não tinha uma ideia clara de qual tivesse sido sua atuação. Ele não
me contava nada, e eu não sabia da sua militância na luta armada entre
1943 e 1945. Não sabia, mas talvez eu pudesse imaginar –afinal, ainda
havia armas pesadas no porão do nosso apartamento.
Seja como for, eu não duvidava que ele tivesse sido antifascista. Só não
entendia por quê. Para mim, o fascismo era uma fase extrema do
capitalismo, e ser antifascista só se justificava para quem desejasse o
socialismo, a revolução proletária e o fim do Estado.
Entre irônico e provocador, perguntei um dia para o meu pai: "Mas por
que você era antifascista, se você não era nem socialista nem
comunista?". Meu pai pensou bem, levando minha pergunta a sério, e
respondeu: "É porque os fascistas eram muito vulgares".
Na hora, a resposta me pareceu elitista –coisa de intelectual, de
burguês ou de aristocrata, eu diria na época. Mas, como disse, era o
começo dos anos 1960: o momento do dito milagre italiano. O país dava
vergonha: corrupção, impunidade, festinhas à la Cavendish e Cabral com
ou sem guardanapos na cabeça, iates insensatos nos cais de Portofino e
carros insensatos no estacionamento dos cais. O luxo se divorciava de
qualquer elegância porque a riqueza surgia rápido demais, sem o tempo
necessário para que os novos donos do dinheiro adquirissem, junto com
suas tralhas, um mínimo de cultura.
Até eu percebia que o luxo, sem cultura, era dramaticamente vulgar,
pois, não se justificando pelo gosto, ele se tornava violência pura: um
esbanjo que só servia para exibir o privilégio. Eram poltronas cativas
no La Scala só para dormir durante as óperas e os concertos, quadros na
parede apenas para lembrar o nome do pintor aos convidados, e marcas,
marcas, marcas.
O poder é vulgar de duas formas básicas, que se misturam facilmente. Há a
vulgaridade do poder sem cultura e há a vulgaridade do poder sem
questões e dilemas morais.
Já disse que o poder sem cultura é vulgar porque ele só se exibe. O
poder sem preocupação moral é vulgar porque seu exercício não tem nem
sequer "desculpas" e revela imediatamente o gozo de quem o detém. Ou
seja, o poderoso sem preocupação moral governa só para gozar de seu
próprio poder.
No Brasil, alguém dirá, estamos acostumados à vulgaridade dos poderosos,
nos dois sentidos. Concordo. Talvez esse fato nos levasse a idealizar
os EUA. Será que acabou?
A campanha de Donald Trump foi um compêndio de vulgaridade. Eu achava
penoso assistir aos seus comícios, mas imaginava que a vulgaridade do
candidato fosse apenas uma estratégia eleitoral. Depois da posse, quem
sabe a dignidade do cargo devolvesse a preocupação moral ao governo do
presidente Trump.
Cuidado, eu não estava imaginando que ele tomaria decisões de governo
diferentes das anunciadas. Aliás, minha dificuldade com o começo da
Presidência Trump pouco tem a ver com as decisões tomadas: mesmo as
ordens executivas das quais mais discordo poderiam ser argumentadas como
soluções imperfeitas a problemas extremamente complexos. Qualquer
cidadão, nos EUA, reconheceria, por exemplo, que a imigração ilegal
indiscriminada é um problema, que há excessos do livre comércio e falhas
no novo sistema de saúde dito Obamacare.
Qualquer decisão seria suportável se a retórica que a apresenta não
parecesse apontar para uma única motivação: a vontade de gozar do poder.
Em suma, eu teria preferido outras decisões de governo, mas o problema
não é esse: o problema é que Trump é constantemente obsceno no exercício
do poder.
Fui rever as declarações de George W. Bush na hora de anunciar a invasão
do Afeganistão e, depois, a do Iraque. São sensíveis, nas palavras
dele, o peso e a dor de uma decisão que tomaria vidas mundo afora, assim
como o esforço para não hostilizar a comunidade muçulmana dos EUA –em
suma, preocupações morais.
Comparei com as palavras de Trump anunciando que ele fecharia as
fronteiras aos cidadãos de sete países muçulmanos. Trump conseguiu me
dar saudade de George W. Bush.
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