Jornalista Andrade Junior

domingo, 24 de julho de 2016

Exagero do bem -

CARLOS ALBERTO SARDENBERG O Globo

Se não fosse senador, Renan Calheiros conseguiria adiar por anos o desfecho dos seus vários inquéritos e processos?

Funcionários estavam roubando comida dos estoques e do restaurante estudantil da Universidade Federal de Viçosa. Isso mesmo: pacotes de arroz, sacos de batatas, latas de suco etc. E já que estavam com a mão na massa, levavam também para suas casas rolos de papel higiênico e produtos de limpeza. Mixaria, entretanto. Tudo somado, a Polícia Federal calcula que o roubo era de R$ 2 milhões ao ano, desde 2008 — logo, um assalto de R$ 16 milhões. Comparado com os números do petrolão, é dinheiro de troco. Mesmo assim, a Polícia Federal fez uma operação pesada. Às 6 da manhã de ontem, 70 agentes federais, com aquelas camionetes pretas, entraram no campus para cumprir mandados de prisão e outros de condução coercitiva. Já traziam funcionários apanhados em suas casas.

A operação, também ao estilo clássico da PF, ganhou um nome, “Recanto das Cigarras” — um aprazível lugar do campus, onde provavelmente os ladrões de comida descansavam à sombra, chupando um picolé do estoque.

Dirão: exagero da PF. Afinal, são delinquentes do baixo escalão, levando coisa pouca, não tinham como fugir, para que todo aquele espalhafato?

Mas reparem: os caras roubavam a comida subsidiada dos estudantes de uma universidade pública. Levavam dinheiro do contribuinte de duas formas, no salário e no assalto. Pagos para prestar serviço público, levavam arroz do povo para suas casas, nos porta-malas de seus carros, estacionados de graça ao lado dos depósitos.

O que pode ser mais exagerado?

Políticos sob suspeita, políticos com medo, não estão preocupados com roubo de comida. Mas estão dizendo que a força-tarefa da Lava-Jato exagera nas suas operações e vai além dos limites nos seus métodos.

E ficaram horrorizados com as Dez Medidas Contra a Corrupção, um conjunto de leis proposto pelo Ministério Público Federal e encaminhado ao Congresso Nacional com 2,5 milhões de assinaturas. O pacote tem um objetivo determinado: endurecer o combate à corrupção.

Em vez disso, o presidente do Senado, Renan Calheiros, anunciou a disposição de colocar em votação o quanto antes um outro projeto, que define e pune diversas modalidades de abuso de autoridade.

Define como abuso, por exemplo, “ofender a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem da pessoa indiciada em inquérito policial”.

Parece fazer sentido, mas esses tipos de ofensa já estão previstos na lei. Ninguém pode fazer aquelas coisas, muito menos sendo uma autoridade.

Ou seja, considerado o momento, aquela definição vem a calhar para criminalizar as espalhafatosas operações da PF. Setenta agentes da PF para prender dois ladrões de comida em suas casas, na frente de seus familiares? Ou para prender um ex-ministro na frente de seus filhos? Ou um pacato empresário? Ou um eleito pelo povo?

Sim, há abuso de autoridade no Brasil. Por exemplo: em greve, auditores fiscais da Receita Federal retêm mercadorias importadas e, com isso, impõem prejuízos a pessoas e empresas. Outro: deputados e senadores que usam a autoridade de seus cargos para afastar a ação da polícia e da Justiça. Se não fosse senador, Renan Calheiros conseguiria adiar por anos o desfecho dos seus vários inquéritos e processos? Até conseguiria, se tivesse dinheiro para bons advogados.

Pesquisas mostram que o criminoso, tirante os casos passionais, claro, sempre calcula a relação custo/benefício. Quanto menor a chance de o cara ser apanhado, maior a criminalidade.

O Brasil é prova disso. A corrupção vai dos bilhões da Petrobras ao roubo de comida na universidade de Viçosa. E a impunidade não é só para os casos de assalto aos cofres públicos. Leis e práticas processuais favorecem amplamente qualquer acusado ou réu que possa pagar por uma boa defesa.

Na ditadura militar, a autoridade oprimia a sociedade civil de maneira ampla e irrestrita. A polícia prendia sem mandado. O governo censurava a imprensa, fechava o Congresso, editava leis. Reclamar de qualquer agente público era uma temeridade.

Na virada para a democracia, tratou-se de garantir a liberdade e os direitos do indivíduo. O que tinha mesmo que ser feito.

Mas algo deu errado. De um lado, há flagrantes abusos de autoridade, especialmente contra os mais pobres e os desprovidos de poder. De outro, criminosos de alto escalão têm infinitos meios de escapar da Justiça.

Os exageros da Lava-Jato permitiram apanhar alguns desses criminosos e, sobretudo, expuseram as falhas do sistema.

O momento é de endurecer o combate à corrupção.











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