Valentina de Botas:
Há algumas semanas, fui fazer companhia no hospital a uma grande amiga cuja mãe estava internada em estado terminal e, no trajeto, relia aquele Drummond. “Por favor, querida Valentina, Drummond não, poesia não: não aguento mais a realidade”, ela se defendeu quando me viu chegar abraçada a um volume de “Amar-amargo y otros poemas”, de uma linda edição português-espanhol que adoro com versos definitivos como “Lutar com palavras/é a luta mais vã”.
Me lembrei dessa ideia – de a poesia nos confrontar com a realidade de um modo que pode ser insuportável – quando buscava uma trégua num livro de poemas neste momento pessoal de vulnerabilidade, estado que sempre me faz pensar em tantas outras pessoas, conhecidas ou não, que também lutam uma luta desigual e fico irmanada com elas sem que nem desconfiem. A luta não é problema, ao contrário, é sinal de vitalidade; o que dana tudo é a desigualdade da peleja; é ter de se fazer potente na impotência, alquimia em que ainda sou caloura.
Pensei na tentativa sangrenta de golpe na Turquia que respaldará as ambições ditatoriais de Erdogan e comprometerá a secularização do Estado; no ataque terrorista em Nice que reafirma que a demência tem faces múltiplas e não tem quando; na situação do Brasil que parou de piorar sem ainda começar a melhorar. Decidi reagir: fui ao cinema. Sem consultar agendas culturais, me dirigi ao cinema mais próximo para deparar com Hugh Grant num encontro não premeditado; simplesmente era para ser e não resisti.
Gosto muito dele como ator de comédias românticas com aqueles olhos azuis e estudada timidez trapalhona possibilitando tudo; e ele está excelente como St.Clair, o marido de Florence num casamento de fachada. O trapalhão charmoso dos outros filmes descartou com maturidade a atrapalhação e, de modo adorável, alia-se ao diretor Stephen Fears, que é sempre grande com grandes atrizes, para dar a Meryl Streep todo o espaço que lhe é devido.
A atriz salva sua Florence do patético porque cobre de dignidade a mulher rica e refinada, a amante e estudiosa de ópera que, pessoa dulcíssima, vive um autoengano devastador para quem não é surdo: julga-se uma cantora lírica. Para não ferir tão terno coração nem fechar carteira tão generosa, ninguém lhe diz que é um tormento ouvi-la, que sua voz desafia a fonoaudiologia e que sua presença cênica é risível. Somente ao final do filme soube que ela existiu e que morreu com quase 70 anos em 1944.
Na fila, ouvira comentários sobre um filme francês em cartaz com outra versão da mesma história, mas numa abordagem ferina da hipocrisia dos bajuladores de Florence, incluindo a crítica especializada de então e as razões de St.Clair, mais jovem e mais bonito do que a mulher, continuar naquele casamento. “Uma tradução literal da realidade empírica”, ouvi alguém (pernóstico) dizer. Ora, uma obra de arte assim sempre perde altura e sentido e, francamente, eu não estava a fim de somar uma carga dessas a tudo o que me levou ao cinema.
Mas, também por não ser literal, o filme provoca, através da atuação de Grant, aquele mesmo efeito da poesia na minha amiga; ainda que suavemente e apenas se o telespectador deixar. Eu já estava ali, não é mesmo? Então, deixei. E é delicioso acompanhar Grant cedendo território para a Florence de Meryl porque parece ter descoberto que protagonismo – na vida e na arte, arrisco dizer – talvez não seja aparecer mais do que os outros, mas reconhecer e assenhorar-se das próprias contradições, indeterminações e fragmentações.
O St.Clair que ele nos mostra é aquele protagonista instaurado pela tragédia grega, aquele que traz o conflito (agon) em si. Enquanto Florence era inteira no próprio devaneio que também sublimava o sofrimento que a impedia de ter uma vida plena com o marido que amava, St.Clair se fracionava entre a lealdade à mulher e a preocupação em ser digno com a namorada; entre ser o fiador de uma miragem que era a verdade de Florence e resignado como ator fracassado a participar do mundo artístico subornando elogios às pantominas da mulher.
O filme não é nenhuma obra prima e até mesmo derrapa em certo melodrama no terço final, mas vale pelos momentos de paz com o imperfeito e presenteia o telespectador com uma trégua delicada não exatamente da realidade lá fora, mas para lembrar que a trégua tem de integrar o fluxo da mesma realidade. Ir ao cinema, fazer ou provar uma comidinha boa, estar com quem gostamos, silenciar um pouco no meio de tanto ruído, qualquer coisa em que nos sintamos acolhidos e acolhedores, com as vulnerabilidades transitórias e as contradições que fazem da vida uma coisa real.
EXTRAÍDADEAVARANDABLOGSPOT
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