Demétrio Magnoli: O Globo
A pesca é importante — mas precisamos de um Ministério da Pesca?
‘Impressiona o quão diverso é o universo dos que reivindicaram a volta
do MinC. Não me recordo de ter visto tamanha reação à extinção de um
órgão federal.” Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, autor das frases,
tem razão nesse ponto específico: a “volta do MinC”
tornou-se uma “causa célebre” dos artistas (ou dos “produtores de cultura”, se preferirem).
Os artistas venceram — mas, no processo, perderam uma oportunidade
singular de explicar sua causa à sociedade. Afinal, eles querem a
cultura ou querem o MinC, que não são a mesma coisa?
Não são? Na “guerra do MinC”, falou-se da cultura como “alma de um país”
(Fernanda Montenegro) e “área estratégica” (Juca Ferreira). As
definições soam bem, mas suas implicações substanciais preocupam.
A primeira remete à noção de identidade nacional: a “educação das
massas” por uma elite iluminada. No Império do Brasil, a cultura deveria
servir como ferramenta do projeto de edificação de uma nação europeia
nos trópicos. No outono da República populista, sob o signo do CPC da
UNE, a cultura tinha a missão de estabelecer um “caráter nacional”
inspirado pela ideia de “resistência ao imperialismo”. A cultura
ajuda-nos a entender quem somos, como indivíduos. Algo bem diverso é a
deliberação política de contar uma história sobre quem somos, como
nação. Fernanda Montenegro, imagino, não pensa nisso, apesar de sua
frase sobre a “alma”. Mas é nisso, entre outras coisas, que Juca
Ferreira pensa quando enaltece o “projeto de nação” associado ao
“governo Lula”.
A segunda definição remete à geopolítica. Na França, por exemplo,
atribui-se à cultura a função estratégica de proteger a esfera da
francofonia diante da marcha avassaladora da língua inglesa. O
“patrimônio cultural”, nesse caso, coagula-se em prestígio nacional,
influência externa e negócios nos mercados dos audiovisuais. Juca
Ferreira tem algo paralelo em mente quando escreve que o “seu” MinC
inscreveu a “cultura brasileira” na nossa “agenda internacional”,
convertendo-a em “ativo do Brasil” que “desperta a admiração do mundo”.
Na “guerra pelo MinC”, os artistas não esclareceram se o que querem
mesmo é essa “cultura for export”, selecionada por um órgão estatal e
necessariamente higienizada, pois formatada de modo a produzir a
“admiração do mundo”.
Juca Ferreira diz que, no governo Lula, “a política cultural foi elevada
ao patamar de Política de Estado” (assim, com as maiúsculas
reverenciais) — e, referindo-se especialmente aos “mais de cinco mil”
Pontos de Cultura designados a “apoiar diretamente as iniciativas de
cada comunidade”, explica que a cultura ganhou lugar de relevo na
“agenda social”. O ex-ministro reivindicava para o MinC uma dotação
assegurada de 2% do Orçamento da União, mais que o dobro do Bolsa
Família e quase metade do valor destinado à Educação. A meta, nunca
atingida, evidencia a vontade de erguer uma poderosa estatal da cultura,
capaz de colocar um rótulo do governo federal em “cada comunidade” —
ou, dito de outro modo, de atrelar ao patrocínio oficial os incontáveis
grupos de “fazedores de cultura” espalhados pelo país.
“Cultura”, aqui, adquire um nítido significado político, ligado a
operações de cooptação e à difusão de extensas redes de patrimonialismo.
Uma parte desse programa foi realizada na gestão de Ferreira, que
chegou a obter 1,3% do Orçamento da União. As implicações disso estão,
hoje, à vista de todos. Na etapa derradeira da “guerra pelo MinC”, o
partido dos artistas cindiu-se em duas alas — e a mais radicalizada
delas proclamou que a ocupação de unidades do MinC prosseguiria até a
“queda de Temer”. Explicitamente celebrado pelo ex-ministro, o movimento
não exibe demandas culturais discerníveis — a menos, é claro, que se
postule uma equivalência entre “cultura” e “lulopetismo”. Será disso que
efetivamente se trata, quando se fala na “alma de um país”?
Existe, certamente, um papel do Estado na esfera da cultura, como sabem
as pessoas razoavelmente cultas e sensatas, que não se deixam hipnotizar
pelos porta-vozes de uma insignificante seita ultraliberal. Isso dito,
por que precisamos de um ministério exclusivo para a cultura? No
exterior, há modelos que, de olhos postos na revolução da informação,
vinculam cultura e comunicação num órgão único. São igualmente fortes os
argumentos para unificar Cultura e Educação, como sugere
inadvertidamente a própria Fernanda Montenegro (“a educação é um
esqueleto que para ficar de pé tem que ter a musculatura da cultura”).
Contudo, o partido dos artistas privou-nos de um debate sobre o tema,
fixando-se no dogma sacrossanto do ministério exclusivo. Suspeito que a
obsessão não mantém relação alguma com a cultura.
A pesca é importante — mas precisamos de um Ministério da Pesca? As
mulheres e os direitos humanos também o são, assim como, por motivos
distintos, os portos e as micro e pequenas empresas. Sabe-se que o
organograma dos 539 ministérios de Dilma Rousseff tinha a finalidade de
comprar o apoio da “base aliada”. Esquece-se, vezes demais, que
funcionava igualmente como instrumento de uma política neocorporativista
que concedia a setores sociais organizados o privilégio de uma cadeira
reservada no salão reluzente de intercâmbios e negócios com o poder
público. Desconfio que, na sua épica “guerra pelo MinC”, o partido dos
artistas combatia essencialmente pela manutenção de um passaporte
diplomático que lhes confere acesso direto aos cofres do Tesouro.
“Alma de um país”? Os museus e as orquestras sinfônicas desfalecem à
míngua, longe das luzes dos holofotes. “Área estratégica”? A Biblioteca
Nacional, a sétima maior do mundo, com suas dez milhões de peças, está
entregue às traças, aos ratos e à água de infiltrações, um destino
compartilhado por tantas bibliotecas públicas municipais. Não tenho
notícia de um manifesto dos artistas sobre isto ou aquilo. Viva o MinC!
extraídaderota2014blogspot
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