Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 22 de maio de 2020

FILOSOFIAS DESPUDORADAS

por Valdemar Munaro.

Nenhuma outra doutrina foi tão oposta à filosofia de Aristóteles (322 a. C.) quanto a do pensador idealista alemão G. W. F. Hegel (1831). Sua metafísica constitui-se numa das filosofias mais pretensiosamente sistemáticas do espírito humano numa visão diametralmente contrária à compreensão do filósofo de Estagira. Isso, por muitas razões, mas, sobretudo, por uma nuclear: Aristóteles via o mundo como realidade orgânica, harmoniosa, regida por princípios de unidade e comunhão; Hegel, porém, via a mesma realidade como um sistema intrinsecamente antagônico, regido por princípios conflitantes.
Pode-se dizer que Hegel antecipou a teoria do big bang porque, segundo ele, no início de tudo só havia o ser puro, a tese. Mas (por que cargas d'água não sabemos), aquela pureza se quebrou formando uma realidade negativa de si mesma, a antítese. Daquele ser puro sobraram cacos (espelhos de impureza e negatividade) que, por sua vez, se juntaram novamente para formar uma nova tese, a síntese. Da síntese, porém, surgiu uma nova antítese e assim sucessivamente. Tal é a lei que rege o mundo e a inteira realidade. De quebradeira em quebradeira a realidade inteira progride e se qualifica. O apaziguamento desse movimento dialético dar-se-á pelo esgotamento das suas forças contrastantes. Por isso, no plano social, se a paz algum dia vier a acontecer, ela acontecerá na marra: cansaremos de tantas guerras inelutáveis e necessárias e cederemos, então, à opção por não brigarmos mais. A paz virá mais do cansaço do que dos acordos cívicos.
A filosofia hegeliana padece de um desleixo, um menosprezo, uma desconsideração consciente do respeito que se deve ter pelo princípio denominado por Aristóteles de 'não contraditório'. As considerações que fez acerca desse princípio são uma das coisas mais notáveis e geniais de seu realismo filosófico. Com efeito, segundo Aristóteles, sem o respeito a ele, não seria possível obtermos qualquer verdade científica, vivermos qualquer princípio ético, praticarmos qualquer diálogo coerente e produtivo, termos políticas sérias. Inscrito naturalmente em nossa inteligência, esse mesmo princípio, normatiza e orienta nossa busca pela verdade e nossa liberdade. Só o respeito e a obediência a ele poderão nos conduzir à imprescindível honestidade intelectual e à consequente vida moral. Tal princípio pede, de modo imperativo, que não sejamos, simultaneamente, afirmadores e negadores de nossas locuções e condutas: não nos é permitido, em nenhuma hipótese, dizermos coisas que, ao mesmo tempo, se desdigam e se neguem. Contraditoriedade não é contrariedade. A contrariedade não nega a oposição, a contraditoriedade sim. A parede de uma sala é contrária a outra, não sua negação. Uma parede que negasse a outra seria contraditória. Se alguém, em torno de um mesmo objeto, mesmo aspecto, mesma circunstância, ao mesmo tempo afirmasse e negasse alguma coisa, terminaria por não dizer nada, seria um louco. E a linguagem dos loucos é ilógica, sem sentido.
A loucura sob a ótica da lógica e da convivência humanas é duplamente insuportável. "De loucos e bêbados geralmente rimos, sob a condição de que sejam da família dos outros". Pois bem, Hegel, o maior filósofo idealista de todos os tempos foi o único que rompeu metafisicamente esse princípio tão caro a Aristóteles. Com efeito, para Hegel, a contradição não é uma opção intelectual trágica, não é uma proposição inimiga, mas é uma parceira da lógica e da vida, porque, segundo ele, ela é a própria lei que rege o dinamismo das coisas, o princípio que vivifica e eletriza o inteiro real. A realidade inteira, portanto, é expressão de uma dialética fantástica que move tudo e polariza tudo. A realidade inteira se parece a um átomo que se alimenta de forças internas contraditórias: noite e dia, feio e bonito, bom e mau, luz e trevas, escravidão e liberdade, justiça e injustiça, quadrado e redondo, norte e sul, grande e pequeno, sábio e ignorante, doçura e amargura, delicadeza e grosseria, guerra e paz, alegria e tristeza, ordem e caos, dor e prazer, etc. Devemos amar e acolher o contraditório como parte integrante e essencial do ser. A contradição, entende Hegel, não é inimiga do ser e da lógica, mas sua fiel escudeira. O ser é feito de contradições. Hegel transformou a contradição numa ilustre hóspede da reflexão intelectual, da natureza, da história. Acolheu-a no seio da reflexão, no lar da inteligência, no ninho do pensamento. Não devemos, pois, nos assustar nem nos envergonhar dela, mas podemos tratá-la como íntima parceira e colaboradora.
A contradição não é uma serpente venenosa, mas uma ilustre dama a ser respeitada e desposada. O que se vê, é que negando e menosprezando o princípio de não contradição somos levados à gandaia intelectual e moral. Deveras, a falta de vergonha começa no desprezo pelo princípio de não contradição. Um bom hegeliano, portanto, não se escandaliza nem se envergonha com as próprias e alheias contradições porque ele as assume como parte da verdade. Hegel fez da contradição uma hóspede subjetiva familiar, adocicou o amargo, temperou a vida moral e intelectual de irresponsabilidades, quebrou o que restava de limite ético no exercício da racionalidade: só por causa disso foi capaz de propor o megalomaníaco 'saber absoluto'. Pode-se dizer que Hegel, sob grande medida, se tornou o semeador das irresponsabilidades racionais e morais no mundo contemporâneo. Nele, dicção e contradição adquiriram pesos ontológicos equivalentes e o bem e o mal se converteram em princípios siameses. O assombroso problema do mal ficou resolvido numa só canetada já que a um só tempo ambos (o bem e o mal), receberam o mesmo valor. Se o bem e o mal se tornaram a mesma coisa ou lados de uma mesma coisa, então não há mais limites morais a ser observados. Hegel, talvez sem o saber, nos libertou dos sentimentos de vergonha e escandalocidade que muitos fatos e atos, antes, nos provocavam. Com Hegel desaparecem não só o pudor, a vergonha, o remorso, a culpa, mas também a admiração, o estupor, o assombro, o deslumbramento, a sensibilidade estética, o amor.
Como se conclui, a filosofia hegeliana é chave para se entender a filosofia e a cultura marxistas. Marx sugou visceralmente do espírito hegeliano para construir sua cosmovisão da política e da história. Lendo diversas vezes 'A Fenomenologia do Espírito' (obra mestra de Hegel), escavou dela os fundamentos de sua doutrina. Entendemos então que todo 'bom' marxista ama a contradição e o conflito, não liga para responsabilidades morais, exceto para as que lhe convém. Sem nenhum pudor, em tempos e lugares convenientes, às vezes aplaude o que critica, outras vezes critica o que aplaude. Democracia e ditadura, socialismo e liberalismo, fascismo e nazismo adquirem significados diversos dependendo de hora e lugar. Contradições desnudadas, escancaradamente à mostra. Elas já não os envergonha. São companhias. Marxistas adoram conflitos e contradições, apreciam a guerra, o antagonismo. Portanto, não é difícil ser marxista pela mesma razão que não é difícil ser hegeliano. É suficiente que acrescentemos à panela de nossa alma uma dose de hegelianismo, uma porção de revoltas, frustrações e ressentimentos pessoais para que tenhamos a sopa marxista. Para Aristóteles, no entanto, e sobretudo para Tomás de Aquino, o mais aristotélico dos pensadores, o fundamento de tudo o que existe não é o conflito, mas a comunhão. Se houver caos ele resulta da ordem e não o inverso. O mesmo vale para a história. Sim, há conflitos na história humana, mas não são eles que regem a historicidade. É a comunhão e o desejo dela que a alimenta. Para Hegel e Marx, ao invés, o conflito é a essência da história e a história uma expressão de conflitos.
Perguntava-se o historiador E. Colomer: se a lei da história, realmente, é o conflito, qual o sentido de almejarmos tempos de paz? Outra pergunta aos amantes do Manifesto do Partido Comunista: se o conflito é a lei que rege a história, então jamais atingiremos o comunismo (que seria o fim dele), e se, porventura, algum comunismo fosse possível, então não estaria errada a análise que fazemos da história? O conflito nos impede de chegarmos ao comunismo e o comunismo nos impede de atestarmos a história como conflitiva. Há algo totalmente ilógico na análise da história humana que o Manifesto estampa. Mas para os marxistas não importa a contradição. Não há vergonha nem pudor em estabelecer com ela vínculos esponsais e levar adiante esse falso casamento. Marx, visceralmente hegeliano, inexoravelmente terminou por ser 'marxista'. Águas hegelianas conduzem ao marxismo. Raro é hegeliano não ser marxista e impossível marxista não ser hegeliano. Hegelianos marxistas e marxistas hegelianos, de sorriso cínico, 'quebram' o respeito que se deve ter pelo princípio de não contradição e não sentem vergonha nem remorso de fazê-lo. Esse 'hegelianismo', porém, respingou também no passado, já germinava no farisaísmo judaico, na hipocrisia passada e presente, antes mesmo de Hegel nascer.
Sua ilustração se mostra em muitos exemplares: a) Robespierre, mero e inexpressivo advogado interiorano, defendia radicalmente a iniquidade da pena de morte até conquistar um naco de poder, mas, depois, sem escrúpulos, mudou totalmente de posição; b) Henrik Ipsen, escritor norueguês, representante da faísca emancipadora e libertadora de todas as mulheres oprimidas do seu tempo, tratava, porém, sua esposa como um lixo (comportamento parecido a M. Gandhi); c) Frida Calo, artista contemporânea, encarnação da consciência do direito e empoderamento femininos, sem remorsos recebia e dava abraços e beijos a um dos maiores assassinos revolucionários do século XX, predador de inocentes e mulheres; d) Michel Foucault, ícone contemporâneo defensor dos homossexuais injustiçados, por detrás das fotografias e cortinas cultivava amizade ignominiosa com xiitas iranianos que fuzilavam e matam gays; e) Karl Marx, bípede pensante e porta voz da classe proletária da qual nunca pertenceu, o grito dos oprimidos e desiguais, desprezava negros e eslavos e jamais trouxe à sua mesa o filho bastardo gerado com a doméstica; f) Jean J. Rousseau, filósofo da Rev. Francesa. arauto da ética e da educação libertadoras audaciosamente deixou seus filhos em orfanatos; g) Fidel Castro, inimigo de toda propriedade privada, segundo um seu guarda costas, tinha iates, ilha e casas só para si; h) Os Myrdall, ministros da economia e da educação, respectivamente, pediam aos suecos para que colocassem os filhos em escolas públicas enquanto os seus iam às privadas; i) No Vietnã, durante os dez anos de conflito (1965 – 1975), 250 mil pessoas perderam a vida, mas um mundo de vozes, em nome da paz, se levantou contra ele e os americanos alçaram voo. Quando isso ocorreu, o massacre superou dois milhões de pessoas, mas isso não importava, era só para protestar. Com a consciência tranquila, sem remorsos, retornou-se ao divã. Os massacres advindos da ausência dos americanos naquele conflito não eram relevantes. Indignação pelo pouco, frieza pelo muito.
Com o desrespeito ao princípio de não contradição aprendemos a esfriar a alma, a tolerar o intolerável, a equiparar a mentira à verdade, a aceitar o inaceitável. Não importa. Podemos agora beber nosso drink confortavelmente tendo a consciência entorpecida, mas tranquila. Aprendermos com o sr. senhor Hegel (ainda amado e estudado por muitos) a não mais sentirmos vergonha das nossas contradições. Elas já não nos escandalizam e já não mais são captadas nas radiografias que fazemos de nossa vida política e intelectual. Tínhamos assinado um contrato com o princípio de não contradição. Hegel nos ensinou a rasgá-lo.
*O autor é professor de Filosofia na UFN em Santa Maria/RS
Santa Maria, 























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