por Denis Lerrer Rosenfield O Globo
Moral e política têm sido tão entrelaçadas em nosso país, que, por
vezes, perde-se uma distinção essencial entre essas duas áreas do
conhecimento e da ação. Se, por um lado, é um ganho político e
institucional da maior importância moralizar a política, por outro lado,
não se pode tornar essa mesma política uma atividade de cunho moral.
Uma coisa é a sociedade assumir a moralidade pública enquanto bandeira,
exigindo que os políticos ajam de acordo com os critérios de honestidade
no tratamento da coisa pública, que, enquanto pública, não pode ser
apropriada privadamente. Trata-se da acepção mesma de República. Outra
muito diferente consiste em aplicar à política os mesmos critérios que
são empregados nos julgamentos de outras ações humanas, visto que a
política é o terreno da violência, da intriga e do engano do outro.
Trata-se de uma dimensão irrecusável da realidade tal como ela é,
devendo ser tratada conforme seus instrumentos específicos.
Nada impede, por exemplo, que um governo envolvido em questões de
imoralidade pública faça reformas necessárias em proveito da coisa
pública, do bem-estar de todos. Pretender que a moral e a política
coincidam pode produzir a satisfação da alma que se representa como
virtuosa, sem que o dado básico da política enquanto atividade
caracterizada por relações de força, pela falta de moralidade, sofra
qualquer alteração.
No caso do governo Temer, por exemplo, temos a velha política sendo
utilizada conforme os ditames de uma agenda reformista, transformando o
país. Ao assumir, o novo presidente defrontou-se com uma questão
estrutural da democracia, atinente aos seus próprios fundamentos: todo
presidente governa com o Parlamento que tem à mão. Não é de seu arbítrio
escolher a composição do Poder Legislativo. É o jogo mesmo das
instituições democráticas. Trata-se do exercício da soberania popular.
Não nos situamos na esfera da moralidade, mas da política, com seu
amoralismo e demagogia.
Note-se que a política foi empregada não para contemplar critérios
abstratos de moralidade, com suas próprias noções de bem, mas para a
realização de outra noção específica do bem, a do bem público, coletivo.
Poder-se-ia falar aqui de uma contraposição entre o bem abstrato da
moralidade e o bem público da política, por mais que se busque reduzir o
alcance dessa diferenciação. Reduzir, porém não anular, pois suas
esferas de atuação são diferentes, assim como suas pressuposições e
critérios.
Nesta perspectiva, o presidente negociou um projeto de reformas, voltado
para os fundamentos mesmos do Estado e da sociedade, que veicula, por
si mesmo, a sua própria noção de bem coletivo e de bem-estar social. O
povo clama por moralidade pública, o novo governo não se caracteriza por
seguir estes critérios e, no entanto, reformas são feitas para tornar
possível o bem público, menosprezado pelo governo anterior.
Temos, então, o que pode aparecer como um paradoxo. O presidente da
República implementou um moderno projeto de reformas, utilizando-se dos
velhos instrumentos da política. Poder-se-ia dizer que a “imoralidade”
tornou-se um instrumento de uma outra conotação ética, a do bem público.
O vício prestou serviço à virtude. Ora, o que aparece como um paradoxo
desaparece na medida em que os critérios da moralidade abstrata e da
política, assim como seus fundamentos e condições, não são os mesmos,
seguindo outros parâmetros e pressupostos. O problema só surge quando
aplicamos a uma e outra esfera de atuação humana critérios que são, por
natureza, distintos.
A política é o terreno do “ser”, da realidade dada, em todas as suas
dimensões, incluindo a violência e tudo o que desagrada ao juízo moral.
Gostaríamos, certamente, de que as coisas fossem de outro modo, mais eis
um dado incontornável de qualquer diagnóstico, análise e juízo. A moral
é o terreno do “dever-ser”, das construções valorativas, em que entram
em jogo critérios do que estimamos que a realidade deveria ser, sem suas
fraturas e imperfeições. No mundo real, a ideia de perfeição aparece
como sendo algo desejável, um fim inalcançável, porém alguns a estimam
como possível, o que transparece nas utopias e nas diferentes formas de
messianismo político.
Ora, utopias e messianismo político expressam um menosprezo pela
realidade, como se esta pudesse ser simplesmente substituída por um
movimento de tipo revolucionário que tudo destruiria do existente.
Ocorre que o mundo do dever-ser é um mundo inexistente, um mundo de
ideias que só encontra sustentação em si mesmo. Cria finalidades e
objetivos que possuem enquanto fundamento somente a sua própria
abstração.
Neste sentido, o discurso das almas virtuosas pode produzir um efeito
retórico para contemplar os amantes da moralidade abstrata, mas é de
pouca utilidade quando confrontado às questões concretas de como
governar, conforme as agruras e o cinismo da política. Hegel dizia que a
consciência veste aqui a roupagem do que ele chamava de “bela alma”,
encantada com sua moralidade pura e sua beleza estética, como se pudesse
viver à parte dos assuntos do mundo, onde impera a impureza.
Uma bela alma evita sujar-se com os assuntos do mundo, porém este segue o
seu curso, com a sujeira que o constitui. Se permanecer em sua
abstração, na subjetividade do lamento, não produzirá maiores
consequências políticas, salvo se enveredar para posturas políticas.
Ocorre que, no caso brasileiro, temos a especificidade de promotores e
juízes, que se estimam destinados a uma missão, como se pudessem
construir um mundo totalmente novo, partindo do pressuposto de que toda
classe política é “má”, “suja”, a ser destruída e substituída por algo
puramente moral. Ocorre que esse outro só existe no terreno das ideias,
do dever-ser. Querer impô-lo pela força de decisões judiciais expressa
uma moralidade que se revela sob a forma do messianismo político.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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