por Thomas Giulliano.
Os meus detratores não acreditam, mas li sem qualquer resultado prévio cada uma das sílabas do livro Paulo Freire: uma história de vida. Considerei as diferentes circunstâncias históricas vividas por Paulo Freire, respeitei muitas de suas cicatrizes emocionais e não ignoro a dificuldade em analisar esse tipo de obra biográfica, pois, como posso colocar em discussão uma experiência amorosa que não foi partilhada comigo intimamente? Mesmo que fique ostensivo, não tenho a presunção de questionar qualquer um dos afetos narrados. A minha (um tanto quanto singela) vontade é a de analisar a estrutura do texto, verificando de que forma a obra descreve o ambiente “freireano”, especificamente, a influência do trabalho do alfabetizador nas mais diversas áreas do saber.
A verdade assusta, caro leitor. Todavia, ainda que o prefácio escrito por Alípio Casali e Vera Barreto diga que “o leitor adentrará numa história envolvente, levado pelas mãos de quem percorreu muitos dos labirintos da vida profissional e pessoal de Freire”, anoto que não é este o maior mérito da obra – que, sim, tem momentos bem acertados, a começar por ser a mais completa biografia sobre a vida de Paulo Freire, escrita por uma testemunha ocular, sua viúva, Ana Maria Araújo Freire.
O fato de ser a mais completa não faz dela uma obra de respaldo técnico, mas, sim, a mais destacada entre as produções “apologéticas” de Freire. É estarrecedor raramente encontrar obras que não sejam cúmplices de Freire – ainda mais em um país como o nosso, em que todo mundo é doutor ou professor. Posso parecer implicante, mas é preciso chamar as coisas pelo nome verdadeiro. Assim, defino a publicação como um fiasco.
Contudo, ela retém outros aspectos meritórios, como as competentes descrições da pobreza vivida por Freire, um bom preâmbulo sobre a sua origem familiar, um conveniente desenvolvimento da conexão intelectual do pedagogo com outros nomes conceituados de nosso país e do mundo (com destaque às páginas 228 e 247), e explica satisfatoriamente como ocorreu a inclusão do petista no mundo escolar. Também merecem elogios o seu bom acervo documental (fotografias e cartas transcritas), a forma como a autora apresenta o cerne cronológico de seu relacionamento com o marido e a sugestão que fomenta – de maneira indireta – de que se faça uma investigação sobre o tratamento que a imprensa brasileira deu a Paulo Freire. Encerrando esse elenco de elogios, cabe uma referência aos pormenores destacados no livro – “Ora, esse é o nome da minha mulher. E é a primeira vez que eu escrevo. São esses pormenores, que são profundamente humanos, que não podem ser esquecidos por um revolucionário. Uma revolução que esquece que um homem ri nervosamente ao escrever o nome de sua mulher é uma revolução frustrada” – e também à sua explanação sobre o método “freireano”, em que esclarece alguns dos aspectos interpretados de maneira desonesta por seus adversários mais desqualificados – “Parece-me no mínimo estranho que livros sobre essa experiência de Angicos enfatizem as ‘40 horas’ no processo de alfabetização como foco do ‘método’, pois Paulo em momento algum fez tal afirmativa ou teve tal pretensão”.
Os apontamentos do parágrafo anterior são irrelevantes quando confrontamos o todo da obra. A começar por seu erro elementar, acólito de todos os capítulos, que é o de ter uma qualidade literária insuficiente, comprometida por um dedicado esforço de sobrepor à força as ideias neles discorridas. Mesmo com o honesto aviso inicial da autora – “Como autora desta biografia eu não desejo e nem quero a imparcialidade da falsa neutralidade” –, causou-me incômodo essa busca por uma cientificidade sem apuro técnico. Reconheço que a contextualização, quando se pensa na relação entre o texto e seu contexto, parece, à primeira vista, uma operação simples, de fácil empreendimento, contudo, princípios como intuição, bom senso e clareza passam apartados do relato. No que se refere à clareza, há um festival de falhas. A primeira é a desorientação temporal, dado que os episódios factuais ficam confusos, anárquicos. Citando casos análogos, a autora ora retoma um assunto que já tinha sido apresentado, alguns sem qualquer relação cíclica, ora comunica uma informação significativa que, no seu relato, já ambientava a descrição. Exemplo: depois de ter descrito a prisão e o exílio de Freire, ela reverbera ad nauseam as mesmas ocorrências, algumas vezes sem qualquer analogia. Outro exemplo vem da página 190, na qual ela expõe, sem uma adequada explicação prévia, a informação de que Paulo Freire tinha um contrato com a UNESCO – ela retomará o assunto posteriormente, porém, quando o fato é apresentado, não há qualquer preocupação cronológica, ele simplesmente aparece da seguinte forma: “Freire: Eu achei que aquele era o tempo do Chile, conversei com meus amigos e coincidiu também com a não renovação do meu contrato com a UNESCO”.
Além disso, há questões estéticas, como a escolha da autora em se apresentar na terceira pessoa em condições como esta: “Sua vida com Nita” – considerando que Nita é o apelido doméstico da autora. Não gosto dessa escolha estilística, em razão de que aduz um caráter artificial à obra. Digo o mesmo com relação às descrições de seus diálogos íntimos, dos quais, como já escrito, não tenho como dizer se são fabricados à obra, mas posso considerá-los apinhados de ênfases que os tornam enfadonhos:
Nita, casamos na terceira idade, quero viver o amor com você, quero viver e aproveitar momentos de tranquilidade com você, quero voltar a escrever, quero cumprir promessas de longa data de aceitar convites fora de São Paulo, mas não posso me furtar de aceitar este convite, se ele realmente vier. É um dever cívico e político que tenho diante de mim mesmo e para com o povo da cidade que me acolheu tão generosamente quando voltei do exílio. Será uma oportunidade importante de testar mais uma vez na prática, desta vez nesta imensa rede pública de ensino que é a cidade de São Paulo, a minha teoria. A minha compreensão de educação.
Nem a sua letra – que era, como a minha, um verdadeiro garrancho – escapou desse palavrório imposto: “Seus escritos são verdadeiros ‘desenhos’ feitos com uma caneta azul, com os destaques com tinta vermelha ou verde no papel branco. São a imagem criada na sua inteligência e sensibilidade, a linguagem criada no seu corpo consciente, no seu corpo inteiro”.
Há também ênfases narrativas em todas as suas ações, mínimas ou máximas, como se elas procedessem de uma fonte messiânica. No exemplo a seguir, veremos um realce verborrágico para algo que não passou de uma obrigação profissional e ética: “Paulo cumpriu cívica e eticamente o seu dever de cidadão: pediu demissão do seu cargo de professor da Unicamp para cumprir a lei”. Para situações como esta, aplico a frase de Albert Camus: “A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto”.
Há também ênfases narrativas em todas as suas ações, mínimas ou máximas, como se elas procedessem de uma fonte messiânica. No exemplo a seguir, veremos um realce verborrágico para algo que não passou de uma obrigação profissional e ética: “Paulo cumpriu cívica e eticamente o seu dever de cidadão: pediu demissão do seu cargo de professor da Unicamp para cumprir a lei”. Para situações como esta, aplico a frase de Albert Camus: “A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto”.
Também fiquei incomodado com o uso das exclamações. Até elas foram objetos para ressaltar generalidades: “Na verdade, o que determinou a recusa de Paulo de passar um semestre no Seminário Teológico foi, prioritariamente, por se sentir pouco competente para ensinar Teologia!”. Estilisticamente, o emprego dessa exclamação demonstra a perplexidade com o fato de que Paulo Freire se viu desprovido de capacidade para exercer a docência em outra área do conhecimento, algo normal, um tanto quanto elogiável, mas que para a autora foi inconcebível, visto que entendia o seu marido como o portador máximo da sabedoria infusa.
Convém dizer que ele foi um homem que não suportava certos tipos de sistemas e pessoas, mas, apesar disso, é apresentado como um arauto do amor, vetor de “uma imensa capacidade de amar”. Repetido excessivas vezes pela autora, esse chavão e os seus sinônimos regulam toda a obra. Destaquei dois exemplos: “Paulo desgastou-se no amor. Por tanto amar. De muito e intensamente amar. Por sua valentia de tanto amar” e “Esses são exemplos de como Paulo amou. Amou as pessoas independentes de sua raça, de seu gênero, de sua religião, de sua idade ou de sua opção ideológica. Amou a natureza”.
O discurso visguento da autora é incômodo. Em vez de palavreados, prefiro a máxima de Camus: “Em filosofia como em política, eu sou, portanto, a favor de qualquer teoria que recuse a inocência ao homem, e a favor de toda prática que o trate como culpado”. Compete dizer que estamos analisando uma obra cujo objeto não é um homem, sequer o falecido marido, mas, antes de tudo, trata-se, sob a ótica da autora, de um profeta: “Paulo, também nisso, foi adivinho, profético”. Ressalto que ao longo da obra encontramos, repetidamente, o uso do termo “profeta”, em virtude de Freire ser tido como um iluminado metafísico, o super-homem exposto pela pena do supracitado Camus: “Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem”.
Embasado no livro Paulo Freire: uma história de vida, concluí que o nosso patrono é o homem que a “peste” não adoentou, que indispôs o pecado original. Essa tentativa de salvar sua aparência externa é a desafinada cantiga de todo o alfarrábio.
O anacronismo é outro erro corriqueiro no livro. Afirmações que não se sustentam factualmente são frequentes ao longo do texto, em especial no capítulo cinco, em que a autora se propõe a analisar o contexto brasileiro de 1960: “Apresentarei um pequeno estudo por mim realizado sobre o conflito ideológico brasileiro dos anos 1960”. Porém, sem espantos, ela segue as mesmas repetições monossilábicas da esquerda maniqueísta, repetindo o discurso de que o outro lado hospeda, na totalidade, o mal: “Parte da Igreja Católica, a tradicional, conservadora, que não estava aliada aos interesses dos pobres e dos despossuídos, também se manifestava contra Paulo”.
O anacronismo é outro erro corriqueiro no livro. Afirmações que não se sustentam factualmente são frequentes ao longo do texto, em especial no capítulo cinco, em que a autora se propõe a analisar o contexto brasileiro de 1960: “Apresentarei um pequeno estudo por mim realizado sobre o conflito ideológico brasileiro dos anos 1960”. Porém, sem espantos, ela segue as mesmas repetições monossilábicas da esquerda maniqueísta, repetindo o discurso de que o outro lado hospeda, na totalidade, o mal: “Parte da Igreja Católica, a tradicional, conservadora, que não estava aliada aos interesses dos pobres e dos despossuídos, também se manifestava contra Paulo”.
Uma coisa é fazer a síntese de um período histórico, desse modo obviamente superficial. No entanto, o erro da autora foi definir teses coletivas sobre os agentes complexos de um período, ignorando aspectos prévios ao objeto pretensamente analisado, como por exemplo, ao omitir o caráter popular de 1964. Historiograficamente falando, os erros não param por aí. Afirmações sem qualquer validação dialética são jogadas ao vento: “Juscelino Kubitschek – a [experiência] mais democrática até então conhecida no Brasil”.
Se isso ocorre com os temas que não tangem diretamente a Paulo Freire, seguramente, encontramos a mesma ocorrência com os que constituem a essência de sua presença no nosso mundo das ideias: “Entretanto, não posso deixar de enfatizar que considero fato da maior relevância para a história da educação do Brasil o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), concebido por Paulo Freire quando secretário de educação no Município de São Paulo, em 1989, e para o qual dediquei algumas palavras no Capítulo 11”. A liberdade da autora de achar o que quiser não me afeta, mas, por ossos do ofício, preciso dizer que essa consideração é embasada, muito provavelmente, na sua esmaltada crença de que o Brasil nasceu em 1964. Ainda que Pedro Álvares Cabral estivesse aqui na deposição de João Goulart, essa afirmação estaria equivocada.
De minha parte, como acredito que o Brasil tem mais de cinco séculos, posso expressar, sem qualquer ênfase doutoral, mas com dois apontamentos, que a declaração da autora está equivocada: primeiro, pela falta de investigação histórica e, segundo, por ignorar os testemunhos intelectuais de homens como José de Anchieta, Machado de Assis, Carlos Gomes, Capistrano de Abreu – estes, pedagogos por excelência.
A obra explora vivências de Freire, partilha algumas de suas emoções decorrentes de seu trabalho, explica a sua compreensão de educação e faz uma laudatória defesa de sua visão socialmente opressiva, não só por adotar o caminho da omissão e, com isso, o de não discutir as frases mais violentas que seus livros têm, mas por ratificar passagens insensatas:
Eu hoje continuo pensando que a democracia não significa o desaparecimento absoluto do direito de violência de quem está proibido de sobreviver… Se você me perguntar: entre os dois, para onde você marcha? Eu marcho para a diminuição do gasto humano, das vidas, por exemplo, mas entendo que elas também possam ser gastas, na medida em que você pretende manter a vida. O próprio da preservação da vida leva à perda de algumas vidas, às vezes, o que é doloroso. Agora, o que eu não acredito é na conscientização dos poderosos. Eu acredito na conversão de alguns poderosos, mas não enquanto classe que comanda, não enquanto classe que domina.
A obra tem uma involuntária entonação kafkiana. É paradoxal o encontro – borrifado de naturalidade discursiva – de trechos tão antônimos como a citação anterior e esta: “Paulo Freire: Eu gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida”. Percebam, estamos no meio de um labirinto. De um lado, encontramos um homem que se apresentava como uma espécie de São Francisco do giz de cera, e, no outro extremo, um déspota.
Quem tem familiaridade com os textos de Freire sabe que as apologias dele aos seus massacres favoritos foram comuns, mesmo assim, cabe aqui expor o quanto é disforme esse discurso labiríntico, em que não há qualquer filtro moral em apresentar um homem sem o mínimo de clarividência humana como um sinônimo de amor. Não quero ser histérico, mas é que, simplesmente, não me habituei a ver uma pessoa ter a sua morte justificada por motivos tão pueris, e, naturalmente, refuto qualquer dor infligida a um inocente. Fundamentado na página 319, posso dizer que nem Paulo Freire, muito menos a autora consideraram “equívocos” os trechos perturbadores de obras como a A Pedagogia da Autonomia e A Pedagogia do Oprimido.
Paulo nunca teve, assim, medo de seus “resvalamentos”, enganos ou erros. Considerava-os parte da busca do saber, dos riscos inerentes à incompletude humana, da explicitação da Verdade que, sendo histórica, deve ir sendo atualizada constantemente. Igualmente, não desprezava serem possíveis os equívocos diante das contingências pessoais e sociais de quem, como ele, pensava e escrevia com ousadia. Reconhecer o erro não é um defeito, é uma virtude, para a qual ele esteve sempre atento e aberto, permanecer no erro sabendo de seu erro é que é uma atitude hipócrita, desonesta, antiética. Expõe vaidade, insegurança e prepotência de quem assim age. Por isso ele foi ousado, não teve medo de correr riscos ao criar e afirmar suas ideias.
Em harmonia com a passagem anterior, escrevo que não houve qualquer retratação do casal Freire. Compete dizer que, como muitos brasileiros das décadas de 1960 e 1970, Paulo Freire endossou o então novo sistema político cubano, instaurado no dia 1.º de janeiro de 1959. Enxergavam nele a realização de suas teorias. É possível conter a crítica por essa adesão nesse espaço de tempo; porém, o fato de Paulo Freire, diferentemente de parte considerável daqueles mesmos brasileiros, ter mantido suas convicções até o seu último suspiro – sendo um aluno bem aplicado de Fidel, ignorando as contrariedades da realidade – atesta seu desdém em relação às condições humanas, logo, uma contradição de sua essência pedagógica.
Justiça seja feita, o pedagogo nunca omitiu sua sede de sangue. Como todo tirano, Paulo Freire conhecia a realidade segundo seu vocabulário, e nunca segundo a História. Suas ações foram uma dedicada tomada de posição, legitimada pelas justificativas de que há diferentes tipos de homens e há um meio legítimo à realização humana na História. Parafraseando Camus, ele de novo: na realidade, um homem deve lutar pelas vítimas; mas, se deixa de gostar de todo o resto, de que serve lutar?
Como quis perturbar o jogo pedagógico brasileiro, discuti no meu livro Desconstruindo Paulo Freire que, por sua simbiose marxista, a teoria de Freire é impraticável sem a premissa de corrigir a lei de Deus ou da natureza (como vocês queiram). Nosso ainda patrono não foi o último homem a portar o “bacilo da peste”; contudo, analisando especificamente seu diagnóstico de intelectual traidor – na definição de Julien Benda –, posso dizer que ele foi mais um intelectual “tipicamente do século XX”, ou seja, um homem apaixonado por si, que acreditou que o seu fragmento da realidade era capaz de realinhar os princípios mais complexos da existência humana. Em seu parâmetro moral, os números de mortos dos regimes comunistas de todo o século XX pouco significaram.
Por fim, atesto que os propósitos da autora foram cumpridos: “Tenho certeza de que me empenharei em dizer tudo aquilo o [sic] que eu sei sobre Paulo, que o engrandece; tudo o que lhe faça justiça, tudo o que é verdadeiro sobre ele, e tudo sobre o que meu marido gostava e se orgulhava de ter feito e/ou pensado e dito”. Nesta biografia, fica claro que a obra de Paulo Freire transporta dois extremos: inquietação apocalíptica e esperança messiânica.
Resenha publicada na Revista Amálgama – https://www.revistaamalgama.com.br/11/2017/resenha-biografia-paulo-freire-historia-de-vida-ana-maria-araujo-freire/
• Reproduzido de http://historiaexpressa.com.br/paulo-freire-antonimo-de-amor/
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