Jornalista Andrade Junior

terça-feira, 22 de abril de 2025

Juristocracia e o estado da liberdade no Brasil

 LUCASBERLANZA/INSTITUTOLIBERAL


No dia 8/4, estive no 49° congresso da Association of Private Enterprise Education, a convite do Independent Institute, em painel organizado por essa instituição para relatar, a uma plateia principalmente composta por acadêmicos e representantes de think tanks, o que ocorre em três grandes países da América Latina relativamente ao estado da liberdade. Publico abaixo, em português e inglês, o texto completo em que se baseou minha apresentação.


“Saudações a todos! É uma grande satisfação e, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade vir até aqui expor a vocês nossa percepção da realidade atual da liberdade no Brasil e seus desafios. Espero poder desempenhar essa tarefa a contento.


A história do Brasil é uma história de constante confronto entre as forças mais liberais e as forças mais antiliberais, em suas mais diversas manifestações. As primeiras, as forças mais liberais, que procuram empurrar o país para o figurino de uma sociedade mais aberta – tanto economicamente quanto politicamente -, encontram alguns obstáculos persistentes. Um deles é o problema do patrimonialismo, conceito cunhado pelo sociólogo Max Weber que uma longa tradição de críticos sociais brasileiros aplica ao cenário da cultura política de nosso país. De Raymundo Faoro ao professor Antonio Paim, um de nossos maiores intelectuais brasileiros, muitos deles o aplicaram ao contexto nacional como uma forma de se referir à constante falta de distinção entre a esfera pública e a esfera privada por parte de nossa administração pública, de nossa burocracia.


A ascensão autoritária de Getúlio Vargas, o regime militar e o ciclo de poder do Partido dos Trabalhadores são cenários distintos que trabalharam, cada um à sua maneira, com essa herança limitadora de que nunca nos emancipamos por completo. Acompanhando tal legado desafiador, prevalece, em muitos aspectos, o domínio, no campo econômico, de mentalidades intervencionistas.


O Brasil experimentou reformas importantes de inspiração liberal, como o fim da hiperinflação e a abertura ao processo de privatizações nos anos 90 (durante os governos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso), a reforma trabalhista, o teto dos gastos públicos no governo de Michel Temer (infelizmente, revertido nos governos posteriores), o reconhecimento da autonomia do Banco Central, a aprovação da Lei de Liberdade Econômica (no governo de Jair Bolsonaro), entre outras conquistas que, se não destruíram a lógica de um Estado ainda muito inchado e regulamentador, promoveram amenizações significativas. Infelizmente, a tônica no governo atual é a idolatria ao gasto público.


Há muitas medidas populistas em curso pela gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, envolvendo propostas de assistencialismo e demais benefícios sem identificar fontes suficientes de financiamento. A população já sente o aumento do preço dos alimentos. A resposta de Lula é que existe um “ladrão” roubando o direito do povo brasileiro de comer. Antes, nossos políticos acusavam as “forças ocultas” e “terríveis” ou o “imperialismo do Fundo Monetário Internacional” pelas consequências de seus malfeitos. Agora, temos, repito, um não-identificado “ladrão do direito de comer”.


Não quero, porém, apesar de esta ser uma conferência principalmente sobre questões econômicas, focar a questão econômica, cujos desafios em meu país – como, aliás, na maior parte de nossa América Latina – não são exatamente novidade. Tampouco quero focar no governo Lula em si. Segundo o professor Og Leme, um dos fundadores de nosso instituto, o Estado de Direito e a economia de mercado, diretamente conectados um ao outro, são as duas mais importantes instituições defendidas, na prática, pela tradição liberal. Gostaria de me concentrar na primeira. O Brasil nunca foi a encarnação ideal da ideia do Estado de Direito, isto é, da autoridade das regras por oposição à regra (arbitrária) das autoridades; se é que podemos falar, como liberais, em “ideais” ou “perfeição”. Entretanto, há, em nossa história, momentos em que estamos mais próximos disso e momentos em que estamos mais distantes. A tese que quero sustentar é a de que o Brasil vive hoje um desses períodos de maior fechamento, mas com características inéditas. Não estamos sob o tacão de ditadores militares ou de um Executivo muito poderoso. Desta vez, em caráter inédito, o problema, por mais contraintuitivo que pareça, deriva da hipertrofia de nosso Poder Judiciário, cuja cúpula vem tomando decisões que avançam contra prerrogativas fundamentais dos indivíduos e inviabilizam o Estado de Direito.


Nossa narrativa deve começar entre 2015 e 2016, quando a presidente Dilma Rousseff, herdeira de Lula, depois de submergir o país em uma das maiores recessões de sua história, sofreu um processo de impeachment. Apesar de votado pelo Senado, o processo de impeachment é presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal, a Suprema Corte brasileira, a autoridade máxima de nosso Poder Judiciário, é composto por 11 pessoas, com a dupla função de tribunal constitucional e tribunal de última instância. Seus ocupantes são chamados de “ministros” e são indicados pelo presidente da República e aprovados em sabatina pelo Senado – porém, apenas na República Velha, no governo de Floriano Peixoto, houve rejeição de indicados. Os critérios? Terem mais de 35 anos e menos de 70 e, teoricamente, “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Podem ocupar o cargo até a aposentadoria compulsória aos 75 anos, detendo a maior remuneração do poder público.


Na época, o presidente do STF, em sua maioria composto por ministros indicados pelo Partido dos Trabalhadores, era Ricardo Lewandowski, nomeado para o cargo pelo presidente Lula. Hoje, aposentado do cargo, ele é ministro da Justiça e Segurança Pública no governo, justamente, de Lula. Segundo a Constituição, a presidente, ao sofrer impeachment, deveria ser inabilitada a cargos públicos por 8 anos. Lewandowski, porém, decidiu que haveria duas votações, uma para a perda do cargo e outra para a inabilitação. Por quê? Porque sim – e assim foi: Dilma manteve os direitos aos cargos políticos. Essa já foi uma primeira grande manifestação de ativismo judicial por parte de quem estava investido com a responsabilidade de proteger a Constituição Federal.


A Operação Lava-Jato foi um grande conjunto de investigações iniciadas em 2014 que apuravam um gigantesco esquema de lavagem de dinheiro na estatal Petrobras, atingindo grandes empresários brasileiros, gestores da estatal e políticos dos maiores partidos do Brasil. Ela explicitava a presença do crime nas entranhas de nossa máquina pública. Seja qual for nossa opinião sobre os detalhes das decisões judiciais tomadas na época, todas em primeira instância e sujeitas à revisão das instâncias superiores, os poderosos do país, no Executivo, no Legislativo e no grande empresariado, estavam sendo atingidos. O sentimento de rejeição aos governos do Partido dos Trabalhadores e estupefação diante desses escândalos, entre outros fatores, levaram Jair Bolsonaro, um militar reformado, à Presidência da República em 2018. Lula, no mesmo ano, foi preso.


Chega-se, então, a 15 de abril de 2019. O site O Antagonista, em sua revista virtual Crusoé, havia publicado uma reportagem que dava conta, com base documental, de denúncia da empreiteira Odebrecht contra o ministro do STF Dias Toffoli, que fora advogado do PT em três campanhas presidenciais antes de ser indicado por Lula ao cargo. O ministro constaria da denúncia com o apelido de “amigo do amigo do meu pai”. Era uma reportagem entre tantas que já foram publicadas sobre diferentes alvos entre os poderosos da República; no entanto, é claro, as potestades do Olimpo de toga são feitas de matéria mais nobre e contra elas nada se pode apontar ou dizer.


Eis que outro ministro, Alexandre de Moraes, que havia sido indicado por Michel Temer, foi encarregado de uma investigação contra eventuais ofensas e agressões à instituição “Supremo Tribunal Federal”, instaurada por decisão do próprio Toffoli e paradoxalmente realizada no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, investigando e julgando atos que o afetariam diretamente, sem que o público em geral tivesse qualquer conhecimento do conteúdo dos ataques e da identidade dos investigados. Dentro desse inquérito, Moraes censurou – este é o termo exato, sem qualquer exagero – a reportagem, exigindo sua retirada do ar e impondo multa de R$ 100 mil por dia em que a decisão não fosse cumprida e intimação para que os jornalistas deponham.


Três dias depois, Moraes suspendeu a censura à revista. Infelizmente, a história não cessa por aí. O inquérito jamais se encerrou e o Supremo Tribunal continua a ser fonte de violações às liberdades individuais sob o pretexto de proteger a instituição STF ou, por extensão, a própria democracia brasileira contra o “extremismo”, a conspiração da “extrema direita”, o “discurso de ódio” e outras ameaças semelhantes. A ausência de uma reação contundente das lideranças das casas legislativas cooperou para que uma sucessão de abusos se perpetrasse.


As eleições de 2022 marcaram novo capítulo nesse processo de radicalização do Judiciário. Conforme a advogada Katia Magalhães, especialista de nosso instituto, informou ao relator da Organização dos Estados Americanos Pedro Vaca, quando de sua visita ao Brasil, Alexandre de Moraes ordenou a derrubada da rede social Telegram devido à recusa da empresa em banir perfis supostamente disseminadores de desinformação. A plataforma só pôde voltar ao ar após a remoção das contas alvejadas por Moraes – decisões judiciais inconstitucionais e ilegais, pois a exclusão de perfis configura censura prévia.


Em agosto daquele ano, um grupo de empresários sofreu busca e apreensão e bloqueio de perfis em redes sob a alegação de que estariam fomentando um golpe de Estado em um grupo privado de WhatsApp. Em outubro, a emissora Jovem Pan foi censurada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Sob o argumento de proteção à integridade das eleições, jornalistas foram proibidos de mencionar fatos relativos à condenação do então candidato Lula da Silva, que foi liberado da prisão após o Supremo Tribunal revisar seu entendimento sobre a prisão em segunda instância mais uma vez (era uma decisão tomada caso a caso até 2009, quando o STF passou a ser contrário à sua implementação, admitindo-a em 2016 e passando a proibir novamente em 2019).


Dias depois, foi a vez de a produtora Brasil Paralelo ter uma atração censurada pelo mesmo TSE. Também sob a alegação de zelo pela regularidade das eleições, o tribunal impediu a produtora de exibir o documentário “Quem mandou matar Jair Bolsonaro?”, que sequer havia sido lançado. Mais uma censura prévia, atentatória à Constituição. Na época, a ministra Cármen Lúcia, também indicada por Lula ao STF, alegou que era um “caso excepcionalíssimo” e que, se algum excesso fosse identificado, “deve ser imediatamente reformulada essa decisão no sentido de se acatar integralmente a Constituição”. A pergunta que se deve fazer é: quando a Constituição reconheceu aos ministros do Supremo o direito de decidir acatá-la ou desacatá-la, seja parcialmente ou totalmente?


Em 8 de janeiro de 2023, atos de vandalismo foram cometidos por militantes em Brasília que invadiram a Praça dos Três Poderes, depredando objetos e fazendo pichações. Eventos semelhantes e até de maiores proporções já haviam ocorrido no passado – por exemplo, em 2017, quando uma “manifestação” de “centrais sindicais resultou em depredação contra ministérios, confronto com a polícia e exigência de saída do presidente Temer, mas ninguém foi preso e condenado. Os cidadãos envolvidos sequer eram políticos com mandato e sequer deveriam ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, o governo Lula, uma parte significativa da grande imprensa e o poder Judiciário, levando adiante uma autêntica “juristocracia”, trataram o fato como um ameaçador golpe de Estado, o que se tornou narrativa oficial e levou a julgamentos quiméricos e inacreditáveis. O tempo nos obriga a apresentar apenas um exemplo mais recente.


A cabeleireira Débora Rodrigues, de 38 anos e com dois filhos pequenos, vestiu-se com as cores do Brasil e se posicionou na Praça dos Três Poderes, em nossa capital, de onde parte dos demais que fizeram a mesma coisa partiriam para entrar nos prédios públicos e quebrar coisas. Provavelmente, gritou algumas palavras de ordem. “Ah, mas ela queria que o Lula fosse retirado da Presidência, que os ministros do STF sumissem, ela sonhava com um golpe…” Sim, e eu sonho com a intervenção extraterrestre. A descrição objetiva dos fatos é essa. Então, ela pichou a estátua com batom. Esse foi o único crime dela. Segundo Alexandre de Moraes (e, pelo menos, também o ministro Flávio Dino), porém, ela cometeu “abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa armada”. Tudo isso seria feito com seu poderoso batom. Por essa razão, mereceria uma condenação a 14 anos de prisão e o pagamento de R$30 milhões.


Em agosto de 2024, reportagens publicadas pelo jornal Folha de São Paulo revelaram irregularidades nos bastidores da atuação do ministro Alexandre de Moraes à frente do Tribunal Superior Eleitoral, em conluio com seus assessores. A mando do ministro Moraes, o juiz auxiliar Ayrton Vieira ordenou ao perito Eduardo Tagliaferro a investigação e a desmonetização, nas redes, de todos os veículos considerados “golpistas”, dentre os quais a Revista Oeste. Como Tagliaferro encontrou apenas “publicações jornalísticas” na Oeste, Vieira determinou que ele “usasse a criatividade” – indícios gritantes de abuso de autoridade, desvio de função e prevaricação.


Naquele mesmo agosto, o ministro Moraes retirou do ar o X, sob a alegação de que a empresa teria se recusado a cumprir suas ordens de exclusão de perfis por ele considerados “desinformadores”, situando o Brasil no rol de países ditatoriais que proíbem o uso da plataforma. O X retomou as atividades após o pagamento de multas milionárias e a exclusão de perfis.


Sem pudor, o ministro do STF Luiz Roberto Barroso, indicado por Dilma e atual presidente do órgão, afirmou a uma plateia de estudantes que “nós derrotamos o bolsonarismo”, como se coubesse aos ministros da cúpula do Judiciário vencer uma parcialidade política. Ele também pregou que é necessário regulamentar as redes sociais para evitar que “o mundo despenque em um abismo de ódio”. Dias Toffoli, por sua vez, afirmou que “nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador, que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”. Desnecessário talvez pontuar que nada disso consta de nossa Constituição Federal.


Uma breve apreciação das mentalidades dos personagens e dos fatos em que se envolveram permite um diagnóstico. O Brasil está sendo conduzido por um consórcio de conveniência entre setores da grande imprensa, o governo Lula e o Judiciário, especialmente os ministros do Supremo Tribunal Federal, que vêm sistematicamente se portando de maneira ativista e autoritária sob o pretexto de que a sociedade e as instituições brasileiras precisam ser protegidas de uma terrível e sombria ameaça e somente eles poderiam exercer esse papel. Na prática, porém, a letra da lei e da Constituição está sendo afrontada por eles mais do que por qualquer outra suposta força social.

O Legislativo tem a prerrogativa constitucional de reagir, defender suas atribuições, combater o ativismo e até punir ministros do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, com processos de impeachment. Por que não se dá uma reação na intensidade suficiente para frear esse processo? Talvez o fato de que os processos contra os parlamentares são julgados no Supremo Tribunal Federal tenha algo a ver com isso, mas deixo aos ouvintes a responsabilidade de suas próprias conclusões. O fato é que tudo isso está acontecendo, agora mesmo, impulsionado por lideranças burocráticas que acreditam em uma “democracia” que só funciona quando convém aos “democratas” (elas próprias, naturalmente), que se consideram tão democratas que podem suspender a democracia quando acham que as pessoas em geral não estão tão bem treinadas para serem democratas quanto elas.


O caso brasileiro deve servir de exemplo a todas as democracias ocidentais para que não sofram de distúrbios semelhantes. É necessário repetir até a exaustão: as questões políticas devem ser resolvidas politicamente, isto é, pelos representantes eleitos pela sociedade. São eles que fazem as leis e definem as condições a serem respeitadas para sua aplicação. Não é a vontade de uma pessoa, não é a imaginação perigosamente criativa de um juiz. Não existe anomia se as forças políticas tomam uma decisão dentro de suas competências, seja a decisão de mover-se nesta ou naquela direção, seja a de não se mover. O que existe ou deve existir é o cumprimento da vontade do legislador e dos seus representados, os cidadãos. Lutemos por essa ideia. Muito obrigado!”















PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/eventosil/juristocracia-e-o-estado-da-liberdade-no-brasil-juristocracy-and-the-state-of-liberty-in-brazil/

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