por Carlos Andreazza O Globo
Um leitor me convida a refletir sobre o conjunto de meus artigos no
GLOBO — qual seria a natureza da coisa? Tento, então, ensaiar uma
resposta, objetivamente impossível, mas que pode encontrar algum caminho
no modo como penso haver tratado a crise decorrente das denúncias
contra Michel Temer.
Era preciso separar o conteúdo indecoroso da gravação feita por Joesley
Batista da inexistência de provas que incriminassem o presidente no
material. E assim me afastei da histeria; da sanha ceifadora. Sobretudo,
era preciso distinguir a possibilidade de que Temer fosse culpado e a
evidência de que fora vítima de uma emboscada em que — pelas mãos de
agentes públicos — absolutamente tudo se havia desviado da lei. E assim
me afastei da ficção — daquela, fantástica, segundo a qual seria do PMDB
o protagonismo num esquema desenvolvido durante os anos de governo
petista, conforme nos tentaram enganar os narradores janotistas.
Oriento-me sob o seguinte norte: não importa a opinião jacobina de
procurador nem a capacidade criativa de juiz para acolher acusação sem
fundamento, tampouco o consenso, na sociedade, de que fulano é bandido;
só o devido processo legal pode condená-lo.
Acredito nos ritos — creio que o mundo é melhor, mais seguro, quando
respeitados. Não jogo para a galera. E assim me afasto de ser mais um
legitimador da cultura do justiçamento pulsante entre nós, tão bem
expressa na sentença popular diariamente apregoada nas ruas: “É ladrão.
Dane-se a lei.”
Penso sobre se o brasileiro, algum dia, alcançará considerar corrupto um
indivíduo como Romero Jucá e, ao mesmo tempo, asqueroso o assédio de
que foi vítima, na semana passada, dentro de um avião. Pergunto: haverá
ainda quem consiga ter Jucá na pior conta e se abismar com a truculência
em que consistiu a blitz daquela senhora? Não é questão particular.
Substitua o senador por qualquer homem público. Serve igualmente a Lula,
Aécio, Renan etc.
Falo de equilíbrio; de ponderação; de discernimento. Falo sobre a
prática corrente — mas peço ao leitor que a projete no futuro. Nem
precisa ir longe. Vá até 2018, logo ali, e especule sobre aonde pode
chegar essa lavra de honras supliciadas, essa agricultura a que tantos
oportunistas e irresponsáveis se lançam lucrativamente, ademais num ano
eleitoral que já corre — e que se decidirá — nos tribunais. Que retrato
sanguinário se pinta no porvir, não?
Convém medir o grau de acomodação moral (de esgarçamento da compreensão
sobre a trama dos direitos individuais, inclusive de calhordas)
enunciado em leituras segundo as quais o que se moveu contra Jucá nada
mais seria do que livre manifestação de cidadania, um protesto de
indignação saudável, a se comprovar na ausência de agressão física. O
quê? Ninguém precisa cuspir na cara do outro (né, Jean Wyllys?) para
surrar. É possível — fácil — ser violento à margem de tipificação penal.
E é mesmo assustador que se trate por normal o ato calculado de acionar
uma câmera e disparar verbo contra terceiros — sejam quem forem. Nada
disso, porém, interessa. Este artigo não é sobre casos concretos, mas
sobre o espírito do tempo que os embala.
Que tal um exame das condições gerais em que essa laia de abordagem se
torna frequente e, mais que aceitável, bem-vinda? O estímulo vem de
cima. Lembro que este é um país em que o Supremo Tribunal Federal
permitiu que a lei retroagisse contra o réu; em que a mesma corte
autorizou o cumprimento de pena extrajudicial; e em que se executou — a
saber ainda se grande ou imensa a participação de membros do Ministério
Público — um flagrante armado contra o presidente da República.
Há outros vários exemplos. Mas a ideia — o conceito — de flagrante
armado é chave. Esse composto de desarranjos institucionais é o vírus
que infectou o Brasil, país cuja grave doença, chaga na medula da
integridade, tem como sintomas ataques como o da senhora a Jucá: um —
atenção — flagrante moral armado. O exemplo vem de cima. É o Estado que
empodera o cidadão a que faça justiça com as próprias mãos.
Se a combinação industrial entre denuncismo e vazamento seletivo de
conteúdos sigilosos criminaliza e condena, com chancela oficial, à
revelia de qualquer processo judicial, por que não posso eu e meu
celular?
Lembro que este é um lugar em que já existe licença, festejada, a que se
afogue a Constituição se para pegar aqueles que – temos certeza – são
criminosos. Refiro-me ao deputado Jorge Picciani e quadrilha,
ilegalmente presos em flagrante — aí, sim — de desrespeito à combinação
de dois artigos constitucionais. “É vagabundo. Dane-se a lei.”
Sim, este é o país do linchamento; de uma gente capaz de perseguir por
anos um jogador de futebol em cujo carro, sob sua direção leviana,
pessoas morreram em decorrência de um acidente. Ou o leitor não se
lembra de Edmundo e dos gritos de “assassino” que o acompanhariam pelo
resto da carreira? Ali e em outros tantos casos, contudo, exprimia-se a
massa — a própria covardia acéfala.
Ocorre que a covardia perdeu o caráter difuso e irracional. Tornou-se
valente e premeditada. E, quando há um covarde animoso e com método,
creia: fascismo haverá.
Fascismo há. Fascismo houve – foi fascismo o que se investiu contra
Jucá. E vai piorar. Os princípios ancoradouros da civilização suplicam
por que combatamos a satisfação íntima ante o empastelamento daqueles de
que não gostamos. Em vão. Vai piorar.
EXTRAÍDADEROTA2014BLOGSPOT
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