por Rodrigo Constantino.
(Publicado originalmente em http://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos/)
Num mundo tão relativista, com tanto lixo efêmero chamado de “arte”, muitos conservadores passaram a pregar o resgate da Beleza. Não deixa de ser curioso, então, que um esquerdista como Paulo Nogueira Batista tenha escrito, em sua coluna de hoje, que a beleza é um “mandamento”. O problema é que, como de praxe, para ele essa “beleza” é puramente estética e está apartada, até por necessidade, de valores morais, de bondade, do que é certo. Eis um trecho:
Sempre me pareceu que o artista verdadeiro sacrifica qualquer “conteúdo”, qualquer “coerência”, por uma bela frase, por um belo gesto, por um belo efeito plástico ou cênico. Como dizia Oscar Wilde, “coerência é a virtude dos que não têm imaginação”. Dos não-artistas, portanto.
O que distingue o artista é a busca incondicional da beleza, em detrimento da verdade, do equilíbrio, do bom senso, da ética, da saúde e até da própria vida. Além disso, leitor, o artista é frequentemente um pobre ser ameaçado, precariamente instalado no mundo. E, se faz concessões, corre o risco de se desvirtuar, de perder o rumo.
Assim, o artista precisa sacrificar, ou deixar em segundo plano, a verdade e a moral. A objetividade e os bons princípios são temas para outros tipos humanos, para o cientista e para o sacerdote, respectivamente. Para o artista, o “conteúdo” enquanto tal não existe propriamente. Nietzsche expressou isso, com perfeição, quando escreveu que só se é artista, verdadeiramente, quando se trata aquilo que os não artistas chamam de “forma” como o conteúdo mesmo da coisa.
Quando um artista migra para outros terrenos (ciência, moral, filosofia, pensamento social, crítica literária) o que acaba dominando, em última análise, é a expressão da beleza. Para o verdadeiro artista, a beleza é o único mandamento. Para bem e para mal, ela interfere o tempo todo. E a obra artística resvala para a mentira, para o engano, para a fabulação. Tangencia a imoralidade, o crime, a perversão.
Há controvérsias. É verdade que Paulo Nogueira fez uma ressalva: “a verdade e a moral podem, sim, coincidir com a beleza, podem aparecer juntas e se reforçar mutuamente. Mas não como regra geral”. Mas sua mensagem essencial parece ser puramente estética, até mesmo anti-moral, e esse talvez seja um vício de artistas brasileiros, mas não necessariamente de artistas de outras terras, com outros valores.
Não sou especialista no assunto. Mas pego carona com quem é: Martim Vasques da Cunha, que escreveu o livro essencial sobre o assunto, especialmente voltado para a arte literária. Em A Poeira da Glória, Martim, inspirado em Mario Vieira de Mello, disseca essa obsessão tão brasileira em separar o Belo do Bom e do Verdadeiro, desfazendo um tripé que se mostra fundamental para a arte eterna. Em um trecho, eis o que o crítico literário diz:
A equivalência do bem e do mal, do certo e do errado, somada a uma ambiguidade literária que se assemelha a um abismo de espelhos, paralisa a sensibilidade nacional – e talvez seja por isso que o brasileiro evita ser sincero consigo mesmo, dificultando como pode a mudança interior. Por não perceber que a única comunicação verdadeira que existe é com “o fundo insubordinável do ser” (expressão fantástica do filósofo espanhol Ortega y Gasset), fazemos justamente o contrário daquele conselho que Teofrasto dava aos contemporâneos todos os tempos: preferimos acolher um homem desprovido de qualquer vida real, elogiando a máscara que se esconde na ironia dos abandonados, quando este “deveria ser mais evitado do que uma víbora”.
Em outro trecho mais adiante, Vasques da Cunha aprofunda o conceito em questão nesse texto:
No passado, muito antes da Idade Média, havia a percepção de que a estrutura da realidade se articulava em três polos de uma tensão orgânica e insuperável: o Bem, o Belo e o Verdadeiro. Apelidados pelos filósofos clássicos de “os três transcendentais”, a força deles existia em seu conjunto – e, se separados, perdiam seu poder de atração para guiar o ser humano neste “vale de lágrimas”. O Bem dava o norte ético, que só podia ser feito se o sujeito tivesse uma educação sentimental correta, se fosse educado numa sensibilidade estética que o orientasse a realizar a bondade e a desprezar o Mal. Se fosse unido com o Belo que tal ação provoca, o deleite que temos quando percebemos que o mundo tem um propósito e um sentido – isto nos ajudava a permanecer na Verdade, no Bem que se unia ao Belo não só porque era bom e bonito, mas sobretudo porque era a coisa correta a fazer.
Para Martim, à medida que o homem passou a se tomar como a medida para todas as coisas, abandonando a ideia de Deus como norte, a tensão orgânica que animava os três polos se desintegrou, e “um processo de fragmentação passou a ser o verdadeiro eixo do mundo moderno, a crise que ainda não conseguimos superar”.
Dessa forma, criou-se um conflito grave entre o princípio ético e o princípio estético, entre o Verdadeiro e o Belo. No Brasil, essa divisão encontrou solo fértil, com um povo obcecado com a estética, mas nem tanto assim com a verdade. Seria um traço de imaturidade, de fuga, pois mergulhar no próprio interior em busca da verdade pode ser uma experiência angustiante, e ter que buscar o mesmo nos outros pode ser ainda pior. Martim explica:
Ao mesmo tempo, a vida com os outros é complicada porque os seres humanos também possuem as suas próprias vidas interiores, as suas respectivas realidades ensimesmadas. Isto só pode causar uma única coisa: conflitos inevitáveis. Então, o que fazemos para suportar isso? Muito simples: inventamos nossas próprias vidas, criamos reinos interiores em que, obviamente, somos nossos próprios monarcas. Nós somos os próprios modelos a quem seguimos – e a quem os outros devem seguir sem hesitação, pelo menos segundo a nossa cabeça. A nossa vida torna-se, enfim, uma obra de arte e queremos que os outros sejam apenas detalhes em uma pintura ou um palco de teatro onde somos os atores, os diretores, os dramaturgos e, de quebra, os contrarregras.
Nessa subjetividade excessiva, de forma um tanto mimada, deixamos de lado a busca pelo universal e eterno e nos regozijamos com a estética pura, sem substância, sem embasamento, sem elo com a Verdade. No mundo apenas estético, o sujeito vê a sua vida e a dos outros como um quadro, uma escultura. No mundo ético, é necessário perceber que há escolhas morais em jogo, que envolvem um compromisso, uma responsabilidade perante elas.
O terceiro estágio seria o religioso, “em que há uma abertura para o transcendente e ele aceita que, após ter passado pelo Belo e pelo Verdadeiro, deve deparar-se com o Bem”. Essa etapa parece bem distante do povo brasileiro, que ficou preso no primeiro estágio:
No Brasil, a compreensão da vida por meio de um ponto de vista meramente estético é o que caracteriza o comportamento do seu cidadão. […] O brasileiro é possuído por uma ideia de Belo que não precisa do Bom nem muito menos do Verdadeiro. O que lhe interessa é a aparência, o disfarce, a dissimulação […] Essa “psicologia do extrovertido” é mais um reflexo da insinceridade que domina as relações entre os brasileiros, insinceridade que tem raízes no fato de que o indivíduo que habita este país não consegue ser verdadeiro consigo mesmo.
São constatações duras, incômodas, mas verdadeiras. E nossa arte, nossa literatura, espelha esse traço de nossa personalidade. Muito apreço pela casca, pela forma, e pouca preocupação com o conteúdo. Um povo superficial, afetado, vidrado na estética, mesmo que a “beleza” não passe de um grande truque de mágica, de uma enorme mentira, de um falso verniz que esconde a podridão interior. Uma vila de Potemkin, feita para impressionar os demais, sem qualquer substância ou pilares sólidos.
extraídadepuggina.org
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