Roberto DaMatta:O Globo
Destaco o conceito de “vida” porque ele nos conduz a um permanente
diálogo entre a crença num Deus patriarcal, dotado de onipotência (pode
tudo), onisciência (sabe tudo) e onipresença (está em todos os lugares) e
os infortúnios que nos atingem neste mundo feito em sete dias para
nosso uso e, hoje, abuso. Acidentes, mortes súbitas, Donald Trump e
outros infortúnios promovem dúvida ou suspeita sobre essa figura que
criou e, pelo menos uma vez, desmanchou este mundo. Ao lado disso, não
se pode deixar de lado a liberdade, irmã do orgulho, que criou a
primeira dissidência. A grande revolta, ainda em curso, liderada por
lúcifer.
Vale apelar para Santo Agostinho, que tanto se preocupou com o problema
do mal. Para ele, não há dúvida de que o bem engloba o mal, mas ele não
gostaria de viver num mundo sem os dois. O que seria do certo sem o errado? E da mão direita sem a esquerda que a complementa?
Não me julguem, amados leitores, como um um ingrato. Tenho muitas
dívidas, mas estou seguro de que Deus escreve certo por linhas tortas. É
como vejo a morte, que tudo perdoa e faz valorizar ainda mais as nossas
vidas falíveis e cheias de frustração. Como diz meu amigo Mario
Batalha: a morte, que não deixa ninguém de fora, é a prova final de uma
suprema igualdade. Não há imprensa hegemônica, nazista ou liberal que
possa transformá-la numa interpretação.
Quem sabe se não foi por tudo isso que Deus levou para o outro mundo
Ricardo Benzaquem de Araújo nesta quinta-feira e fez com que minha
estimada amiga Lívia Barbosa virasse parteira de sua netinha dentro de
um automóvel, num estacionamento em pleno Leblon. Nomearam essa
criaturinha Cecilia — nome da mãe de sua parteira —, e assim refizeram
sublime ponte que liga esse mundo com o outro.
Ricardo, o morto que me obriga a escrever essas linhas, era um andarilho
de vielas e avenidas das chamadas Ciências Humanas. Essas novas
teologias que lidam com o que surge como paradoxal e com os inesperados
provocados por regras sociais tidas como óbvias e certas. Como
sócio-historiador de primeira categoria, Ricardinho, como nós os
chamávamos por causa de seu temperamento simples, doce e generoso, sabia
tudo, mas fingia que você o ensinava alguma coisa. Foi meu aluno no
Museu Nacional nos idos e terríveis anos 70, os quais, não obstante,
foram tão decisivos para a fundação da moderna antropologia social
brasileira. A essa atitude, cujo propósito era o de compreender mais do
que julgar, Ricardo deu uma inestimável contribuição, apreciando a obra
de Gilberto Freyre no livro “Guerra e paz”. Um ensaio que só uma alma
com o seu equilíbrio de rabino poderia ter produzido. Ali ele revela o
erro de reduzir Freyre a uma só gaveta e discute a presença dos
desequilíbrios presentes no Brasil inventado pela obra deste que foi o
maior conhecedor do Brasil.
Ricardo partiu na mesma semana da ex-primeira-dama Marisa Letícia da
Silva e no vácuo causado pela morte por acidente do ministro do STF
Teori Zavascki. Todos deixam uma onda de sofrimento e de empatia, que
abrem espaço para as tréguas da civilidade e do coração, abafando
ressentimentos e diferenças.
É o trabalho do morto e da morte que obriga a um doloroso desfazer do
corpo e, ao mesmo tempo, tentar preencher o seu lugar na rede social de
que fazia parte. A dor é enorme, mas dela brota a ressurreição naquilo
que nós, falantes de português, chamamos de saudade.
Eis o que dela diz um Joaquim Nabuco, mais antropólogo social do que
político, numa palestra que proferiu no Vassar College, Estados Unidos,
em 1909:
“Mas como traduzir um sentimento que em língua alguma, a não ser na
nossa, se cristalizou numa única palavra? Consideramos e proclamamos
esse vocábulo o mais lindo que existe em qualquer idioma, a pérola da
linguagem humana. Ele exprime as lembranças tristes da vida, mas também
suas esperanças imperecíveis. Os túmulos trazem-no gravado como
inscrição: saudade. A mensagem dos amantes entre eles é saudade. Saudade é
a mensagem dos ausentes à pátria e aos amigos. Saudade, como vedes, é a
hera do coração, presa às suas ruínas e crescendo na própria solidão.
Para traduzir-lhe o sentido, precisaríeis, em inglês, de quatro
palavras: remembrance, love, grief e longing.
Omitindo uma delas, não se traduziria o sentimento completo. No
entanto, saudade não é senão uma nova forma, polida pelas lágrimas, da
palavra soledade, solidão”.
Até o momento no qual aqueles que partiram sejam devida e humanamente
esquecidos e, às vezes, lembrados como vai ocorrer com todos e tudo
neste mundo, o qual, como dizia Thornton Wilder, só pode ser unido ao
outro pela ponte do amor.
extraídaderota2014blogspot
0 comments:
Postar um comentário