FERNANDO GABEIRA
"Hey! Matilda, Matil-da, she take me money and run Venezuela." Se invertemos as frases desse calipso celebrizado por Harry Belafonte nos anos 1950, talvez tenhamos uma boa visão das relações do Brasil com a Venezuela.
As relações comerciais quadruplicaram com a ascensão do chavismo, com saldo brasileiro. O País tornou-se o terceiro parceiro comercial da Venezuela, perdendo apenas para os EUA e a China. Não só os alimentos da chamada cadeia proteica, principalmente carne bovina, são vendidos por lá, também a água mineral nos restaurantes de Caracas costuma ser brasileira. A Embraer vende aviões, a Odebrecht e a Camargo Corrêa buscam se consolidar associando-se ao setor petroleiro. Enfim, tudo parece correr bem para os nossos negócios.
Até na fronteira, em Santa Helena do Uairen, fiquei sabendo que as compras foram recordes nos grandes feriados. O real valia 2,8 bolívares e nossos turistas levavam tudo o que podiam nos seus carros abastecidos com gasolina subsidiada pelo governo de lá. Na estrada entre Boa Vista e Santa Helena podem ser vistos os traços de um grande comércio formiguinha, o do contrabando de gasolina. Várias carcaças de carros marcam o curso da estrada, de modo geral queimadas e abandonadas por contrabandistas fugindo da polícia.
Neste momento pós-Chávez, em que a Venezuela entra numa crise, o governo endurece a repressão aos opositores, compactua com grupos armados que atiram na multidão, prende e tortura manifestantes, o que o Brasil pode dizer? Laços comerciais não impediram que o maior parceiro da Venezuela condenasse a política de Nicolás Maduro e o aconselhasse a considerar o que pedem os seus opositores. Mas os americanos são los americanos. O nó que nos ata à Venezuela não é apenas comercial, mas ideológico.
Existe um medo de condenar os erros da política de Maduro porque, desde os primórdios do tempo, um princípio aterrador domina a esquerda: não mencionar os fatos que possam fortalecer o campo adversário. Nesse processo, a omissão ou mesmo a distorção dos fatos passam a ser vividas como um mais alto dever, o de preservar a experiência revolucionária. Isso vale para Cuba e para a Venezuela, uma vez estão entrelaçados e o próprio know-how repressivo cubano foi transplantado para o chamado socialismo do século 21.
O general Angel Vivas, entrincheirado com um fuzil na sua casa em Prado del Este, afirmou no Twitter que estava para ser presos por cubanos e gente da Guarda Nacional Bolivariana. Vestindo camisa vermelha, motociclistas armados atiraram na multidão. Atingiram a cabeça da Miss Turismo de Carabobo. Que perigo Génesis Carmona, de 22 anos, representava para o tal socialismo do século 21? Que perigo representam todos os estudantes que estavam com ela protestando contra o governo?
São golpistas, diz Maduro. Mas Nicolás Maduro é uma rara espécie de visionário. Ele vê Hugo Chávez transfigurado num passarinho, vê o rosto de Chávez numa escavação de metrô e sua visão mais cômica se deu na cela onde está preso Leopoldo López. Maduro afirma que um desconhecido foi preso tentando entrar na cela de López com inúmeros mapas das instalações petrolíferas do país. Mesmo um roteirista de cinema teria dificuldades de dar um toque de realidade a essa versão. Como ter acesso à cela de López? De que adiantariam para ele os mapas na prisão? Por que não estudaram esses mapas nos longos anos de liberdade?
Maduro é condutor de um processo que arrebata ainda a simpatia de alguns europeus e de uma faixa da juventude de esquerda. O único fator a que se apegam seus defensores é o apoio popular. Mas mesmo esse apoio começa a ser corroído. Ao ler mais atentamente os textos do Tal Cual, percebi que ao mencionar a oposição o jornal diz também que alguns chavistas discordam da repressão de Maduro. Horas depois constatei que falava de algo real: o governador de Táchira, José Vielma Mora, criticou a prisão de López e condenou os métodos do governo. Vielma Mora é chavista.
Num momento tão dramático para o continente, estamos atados a dois nós. Para desatar o primeiro, o econômico, é preciso introduzir um visão de médio prazo. A economia venezuelana está em decadência e muito provavelmente os negócios não serão tão sedutores nem os pagamentos, pontuais. Sempre teremos relações com a Venezuela: é preciso pensar nisso, antes de embarcar na canoa de Maduro.
Para desatar o segundo nó, o ideológico, é preciso levar o governo ao debate, saber o que está vendo na crise venezuelana. Se confiar só em Maduro, verá passarinhos durante o dia e carneirinhos antes de dormir. Como é possível identificar-se com um projeto que melhorou as condições imediatas dos pobres, mas está se mostrando insustentável em termos econômicos, mata misses, sufoca a imprensa, prende estudantes, aterroriza a oposição?
Não tenho esperança de convencê-los, como não tinha de convencer as pessoas de que o mundo não acabaria em 2012. Mas quando se trata de uma questão política que envolve a imagem internacional do Brasil é preciso buscar um mínimo de convergência. É preciso que o governo compreenda que criticar a violação dos direitos humanos na Venezuela não é dar munição aos adversários de Nicolás Maduro. Ela foi dada pelo próprio Maduro quando viu uma tentativa de golpe num movimento de protesto. A munição nasce dos fatos e quando começamos a negá-los por um dever de consciência alguma coisa está errada com o próprio sentido da palavra.
Compreendo que o governo tem ganho as eleições e, no momento, desfruta o apoio da maioria. Mas isso o autoriza a vestir uma camisa partidária em nosso peito juvenil e outros peitos de idade mais avançada?
Traçamos uma linha imaginária no século passado e continuamos a nos orientar por ela. Esquerda ou direita? E estamos levando o nosso rigor geométrico para os cemitérios: mortos de esquerda ou de direita?
Diante de nós, a Venezuela em transe.
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