A história repete-se como farsa. A frase de Karl Marx, bastante desbotada pelo uso, nunca fez tanto sentido no Brasil.
Nas últimas semanas, influenciada pelas prisões dos condenados no “mensalão” e pelas trocas de acusações entre petistas e tucanos por conta do escândalo dos trens em São Paulo, a política nacional parece mergulhada em um “mar de lama”. O termo aqui não é gratuito. “Mar de lama” foi uma expressão bastante explorada no auge da até então mais ferrenha disputa pelo poder no País em tempos de eleições livres, protagonizada pelo PTB de Getúlio Vargas e a UDN de Carlos Lacerda. O resultado, ninguém há de duvidar, não poderia ter sido pior: duas décadas de uma ditadura que nos tirou dos trilhos da modernidade. ...
Em 2014, ano de eleição presidencial, a polarização PT-PSDB completará
20 anos. Embora o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, e a
ex-senadora Marina Silva se apresentem como uma terceira via, nada
indica, por ora, mudanças no embate nas urnas. Se assim for, a dicotomia
petista-tucana terá perdurado mais do que a velha rinha PTB-UDN do
século passado.
Como ontem, o atual duelo escora-se em um pilar que fez, faz e sempre
fará mal à democracia, a criminalização da política. Com cada vez menos
diferenças ideológicas e, em grande medida, trancafiados em uma
armadilha montada pelo poder real, permanente, entre eles a mídia, as
duas legendas têm aceitado a pauta. O PSDB, por falta de um programa de
governo e uma vã esperança de voltar ao poder por meio do discurso
moralista. O PT, pela incapacidade de exorcizar seus fantasmas internos,
admitir eventuais erros e enfrentar as forças que procuraram fazer seus
escândalos parecerem maiores e mais graves do que realmente são, ainda
que merecedores de punições dentro das regras republicanas.
O pugilato moral é ruim para as duas forças. Uma vitória por pontos não
acrescenta muito se, no fim das contas, a plateia vaia os contendores
no ringue. E é o que tem ocorrido, relata o cientista político Marcos
Coimbra à página 49: “Quem lida com pesquisas de opinião,
particularmente as qualitativas, vê avolumar-se o contingente de
eleitores que mostram odiar alguma coisa ou tudo na política. Não a
simples desaprovação ou rejeição, o desgostar de alguém ou de um
partido. Mas o ódio”.
A desilusão atinge até mesmo habituados ao jogo político. “Não vejo
diferença na proposta político-econômica dos presidenciáveis. Nenhum
deles discute mudanças estruturais”, lamenta o economista Carlos Lessa,
ex-presidente do BNDES. “A corrupção está enraizada no País, mas o
problema é a inexistência de diferenças significativas entre os
partidos. O eleitorado percebe que a sucessão presidencial não vai
colocar o Brasil em pauta.”
O novo cavalo de batalha é a investigação do cartel do Metrô e dos
trens em São Paulo, delatado pela Siemens. Além da empresa alemã,
gigantes do setor de transportes, como a francesa Alstom, a canadense
Bombardier e a espanhola CAF são suspeitas de manipular licitações do
governo paulista, sob o comando dos tucanos há 19 anos. São sólidos os
indícios de pagamento de propina a agentes públicos, além de uma
denúncia anônima sobre supostos repasses para o caixa 2 do PSDB.
Edson Aparecido, secretário da Casa Civil do governador Geraldo
Alckmin, e o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP), sempre na órbita
dos tucanos, são apontados no documento entre os receptores de propina. O
texto cita ainda o secretário de Desenvolvimento Econômico, Rodrigo
Garcia (DEM), o secretário de Transportes Metropolitanos, Jurandir
Fernandes, e os parlamentares tucanos José Aníbal e Aloysio Nunes como
partícipes na trama, devido ao “estreito relacionamento” com o consultor
Arthur Teixeira, suposto operador do esquema.
A denúncia é atribuída a Everton Rheinheimer, ex-diretor da Siemens.
Embora não assuma a autoria, sobretudo após assinar um acordo de delação
premiada, fontes ligadas à investigação confirmaram a CartaCapital ser
ele o autor do documento apócrifo.
Todos os políticos citados negam qualquer ilegalidade, e acusam o PT de
forjar a denúncia na tentativa de incriminá-los. O ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo, admitiu ter recebido em maio o documento das mãos
do petista Simão Pedro, secretário de Serviços do prefeito Fernando
Haddad, e repassado o material à Polícia Federal. “Não há nada sendo
investigado a partir de denúncia anônima. Já existia o inquérito”,
afirmou o ministro.
A inclusão do documento nos autos do inquérito gerou, porém, uma
virulenta reação dos caciques tucanos. Os políticos citados chamaram o
ministro de “farsante”, “aloprado” e “irresponsável”. O senador Aécio
Neves, presidenciável tucano, assumiu a linha de frente na defesa dos
colegas: “Acho que ele perdeu as condições de ser o coordenador dessas
investigações como ministro da Justiça, pelo açodamento nesse processo”.
Uma representação pede à Procuradoria-Geral da República que apure
eventual prática de improbidade administrativa de Cardozo.
Há muito em jogo. Ao delatar o cartel, a Siemens escancarou os meandros
de um esquema que pode ter superfaturado em até 30% vários contratos
com o Metrô e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). O
prejuízo aos cofres públicos é estimado em mais de 570 milhões de reais.
O valor é quase oito vezes superior ao total de recursos supostamente
desviados do Banco do Brasil (73,8 milhões) para abastecer o “mensalão”
petista, fonte de dinheiro público identificada no esquema, segundo a
versão consagrada na condenação do Supremo Tribunal Federal. Além do
acerto ilícito entre empresas do cartel, a PF deparou-se com provas de
pagamento de propina a agentes públicos.
É o caso de João Roberto Zaniboni, ex-diretor da CPTM nos governos de
Mario Covas e Geraldo Alckmin. No início de novembro, a Justiça da Suíça
comunicou às autoridades brasileiras sua condenação, naquele país, por
lavagem de dinheiro. Entre os bens confiscados, há 836 mil dólares em
uma conta no Credit Suisse de Zurique. Parte dessa soma, 255,8 mil
dólares, foi transferida por Arthur Teixeira. Os suíços acreditam que o
dinheiro era fruto de propina paga pela Alstom, mas chegaram a desistir
do caso por falta de colaboração das autoridades brasileiras. Dormitava
no gabinete do procurador Rodrigo De Grandis, desde 2011, um pedido para
a tomada de depoimento de suspeitos. Por conta de “uma falha
administrativa”, o pedido foi arquivado em uma pasta errada.
Após a quebra do sigilo fiscal da Focco Tecnologia e Engenharia,
empresa da qual Zaniboni foi sócio, a PF identificou depósitos da Alstom
que somam 2 milhões de reais, além de 8,5 milhões pagos pelo governo
paulista por serviços de consultoria. A empresa pertence a outro
ex-diretor da CPTM: Ademir de Araújo.
As suspeitas de formação de cartel tampouco são novas. Conforme
CartaCapital revelou em 2009, as combinações ilícitas foram denunciadas
por um ex-diretor da Siemens naquele mesmo ano. Um documento com o modus
operandi do esquema foi apresentado ao Ministério Público Federal pelo
deputado estadual petista Roberto Felício, que tomou conhecimento do
relato do executivo. Para lavar o dinheiro ilícito, as empresas do
cartel usariam os serviços de Arthur Teixeira e Sergio Meira Teixeira,
donos das empresas Procint Projetos e Consultoria Internacional e
Constech Assessoria e Consultoria Internacional, apontadas pelo
informante como responsáveis por duas offshore no Uruguai.
As companhias são suspeitas de intermediar o pagamento de propina. À
época, dois contratos firmados pela Siemens com as offshore uruguaias, e
apresentados ao procurador De Grandis, comprovavam a relação entre as
empresas. Com a quebra dos sigilos fiscal e bancário, hoje a PF sabe que
apenas a Procint movimentou mais de 37,5 milhões de reais entre 2002 e
2011. Ao menos 14,5 milhões são recursos depositados por empresas do
suposto cartel, como Alstom, Bombardier, CAF, Siemens e MGE.
Arthur Teixeira não atendeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital.
Seu sócio faleceu em 2011. Ao jornal O Estado de S. Paulo, o dono da
Procint negou que os depósitos de clientes seriam decorrentes de
pagamento de propina ou de serviços fictícios. A transferência feita
para a conta de Zaniboni na Suíça seria a remuneração de uma consultoria
“informal” feita por ele.
Em 2011, dois anos após as primeiras denúncias, o então deputado
estadual Simão Pedro encaminhou ao MP paulista novas informações
repassadas pelo informante da Siemens. Entre elas, uma carta anônima
enviada ao ombudsman da empresa alemã, na qual é relatado o pagamento de
propina a agentes públicos no Brasil. Tanto a cópia do e-mail original,
em inglês, como uma tradução em português foram repassadas aos
promotores paulistas.
Novas cópias foram anexadas recentemente ao inquérito da PF. Os tucanos
acusam Simão Pedro de ter acrescentado trechos inexistentes na
tradução, para envolver o PSDB nas denúncias. “As duas versões dessa
carta endereçada ao ombudsman da Siemens estão com o Ministério Público
há anos”, defende-se o petista.
O documento que cita nominalmente políticos tucanos é outro, mais
recente. Não tem assinatura, mas foi datado: “17/04/2013”. Nesta peça, o
denunciante anônimo diz ter se reunido anteriormente com os promotores
Valter Santin, Silvio Marques e Beatriz de Oliveira para dar mais
detalhes do cartel.
Simão Pedro acompanhou o informante para essa conversa no Ministério
Público de São Paulo em 2012, versão confirmada pelos promotores
paulistas. “O denunciante estava com medo de depor. Queria garantias”,
lembra Marques. “Não havia indícios suficientes para justificar quebras
de sigilo ou interceptação telefônica”, emenda Beatriz de Oliveira.
O petista alega que as informações repassadas a Cardozo não diferem
muito do exposto aos promotores anteriormente. “Procurei colaborar de
todas as formas possíveis. Na Assembleia Legislativa, tentei diversas
vezes emplacar uma CPI.”
Com a identidade exposta pela mídia, Rheinheimer evita jornalistas.
Divulgou apenas uma nota oficial na sexta-feira 22, na qual informa que o
documento atribuído a ele “é, na verdade, anônimo.” Segundo o
executivo, o material devassado e as informações publicadas foram
distorcidos e “não condizem com a realidade”. Foi a senha para a cúpula
tucana partir para a ofensiva e classificar a denúncia como uma fraude
de “aloprados petistas”.
A nota não confirma nem desmente a autoria do documento, alertam fontes
ligadas a Rheinheimer. O documento continua a ser, como sempre foi, uma
peça sem assinatura. Quanto às “distorções”, o denunciante queixou-se a
interlocutores do uso de trechos fora do contexto em meio à intestina
disputa política entre PT e PSDB.
Citado na denúncia e considerado um dos principais articuladores
políticos do governador paulista, Edson Aparecido nega ter relações com
Arthur Teixeira e insiste na tese da fraude. “Esse ex-diretor da Siemens
já desmentiu tudo”, afirma. “Isso vai ao encontro da delação premiada
feita em São Paulo e Brasília, na qual ele não cita nenhum nome”,
emenda, sem explicar como pôde consultar o acordo sigiloso. Segundo a
Lei nº 12.850, de 2013, um colaborador da Justiça não pode ter a
identidade revelada. O acesso aos autos é restrito ao juiz, ao MP e ao
delegado de polícia. O acordo de delação premiada, por sinal, está
apartado do inquérito. Só deve ser revelado após a apresentação da
denúncia à Justiça.
Um dos mais exaltados com a denúncia anônima é o senador Aloysio Nunes.
Ele admite relações profissionais com a Procint, mas nega qualquer
ilegalidade. Seu nome acabou, porém, atrelado a outro investigado. Desta
vez, por uma testemunha identificada: Edna Flores, ex-secretária do
consultor Jorge Fagali Neto.
Em 2009, a Justiça de São Paulo determinou o bloqueio de uma conta na
Suíça atribuída a Fagali Neto, sob suspeita de receber recursos ilegais
da Alstom. Os depósitos somaram mais de 10,5 milhões de dólares no
Banque Safdié de Genebra até setembro de 2003, segundo o Ministério
Público da Suíça.
Secretário de Transportes Metropo- litanos do governador Luiz Antonio
Fleury Filho (PMDB) e irmão de José Jorge Fagali, ex-presidente do
Metrô, o consultor recebia informações privilegiadas do engenheiro Pedro
Benvenuto, secretário-executivo do Conselho Gestor do Programa de
Parcerias Público-Privadas. Após a secretária Edna Flores apresentar os
registros da troca de e-mails entre eles sobre investimentos do Metrô,
Benvenuto pediu afastamento do cargo no fim de setembro de 2013. Duas
semanas depois, daria mais detalhes sobre os negócios de Fagali Neto à
PF.
A cada três meses o ex-patrão viajava para a Suíça, registra a
secretária em seu depoimento, de 9 de outubro. Ainda de acordo com o
relato, o consultor mantinha contato quase diário com o lobista Arthur
Teixeira. Ele usava dinheiro em espécie, inclusive em malas, para pagar
despesas. Antes das licitações, reunia-se com representantes de empresas
como Tejofran, Bombardier e Mitsui “para ajustar previamente os
valores”. A secretária diz ainda que as planilhas a ser apresentadas nos
certames eram elaboradas e modificadas pelo grupo. De acordo com ela,
“Fagali Neto trocava e-mails com Aloysio Nunes acerca das licitações no
metrô”.
Nunes não respondeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Na
quarta-feira 27, conseguiu aprovar na Comissão de Ética do Senado um
convite para Cardozo explicar suas “intervenções” no inquérito. O
ministro da Justiça reagiu: “Acho lamentável que queiram transformar
quem cumpre a lei em réu apenas pelo fato de que há uma investigação,
obviamente existente desde 2008. A maior parte dos países atingidos por
esse escândalo investigou e puniu os envolvidos. O Brasil caminha
lentamente.”
A escalada de denúncias contra o PSDB é uma tentativa do PT de se
proteger do impacto negativo do “mensalão”, acusam os tucanos. O
deputado Sérgio Guerra, ex-presidente do PSDB, garante que seu partido
evitará a exploração de casos de corrupção na campanha. “Não temos que
eleitoralizar um assunto tratado no âmbito jurídico, seu fórum
adequado.”
Parece uma posição sensata, avaliam cientistas políticos. “Nas eleições
municipais de 2012, mesmo com o julgamento em evidência, o PT não
perdeu votos. Os partidos não sofrem grandes abalos por conta de
escândalos. Tampouco os casos de corrupção do PSDB devem alterar seu
desempenho eleitoral”, garante Marcus Figueiredo, da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
Para o eleitorado, a corrupção não está associada a partidos
específicos, mas ao sistema político brasileiro, observa Leonardo
Avritzer, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Os eleitores não
percebem a existência de um partido mais corrupto do que o outro. Entre
os menos informados, há a tendência de criticar toda a classe política.
Os mais informados sabem que é uma questão complexa, ligada ao
financiamento das campanhas políticas.”
Poucos duvidam, no entanto, que os escândalos devem ocupar um lugar
privilegiado nos debates de 2014. Com a filiação de Marina Silva ao PSB,
fala-se muito da possibilidade de a candidatura de Eduardo Campos
representar uma terceira via, capaz de desmontar a previsibilidade dos
ataques mútuos entre petistas e tucanos.
Para Avritzer, o crescimento do PSB pode levar ao deslocamento do
espectro político para a esquerda, caso o partido consiga superar o PSDB
como principal força de oposição. “Campos tem críticas ao governo
federal, mas reconhece o legado de Lula.” Figueiredo discorda: “Ele
disputa no campo da direita. Esforça-se por ter apoio da elite do
Nordeste e busca aliados na Avenida Paulista”. Com uma virtude:
distancia-se do denuncismo.
Apesar das promessas dos partidos e das análises dos especialistas, as
duas últimas eleições presidenciais indicaram o contrário. Nelas, o
discurso moralista, vazio, eclipsou qualquer debate sério de ideias. O
udenismo venceu. Não nas urnas, mas no controle da agenda.
Fonte: Revista Carta Capital -
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