O camarada no laboratório foi enfático:
- É indispensável que o senhor, nas próximas 24 horas, leve uma vida normal, para não comprometer os resultados do exame.
Vida normal? Então isso existe? Já não era sem tempo!
Ao sair de lá, quinze minutos mais tarde, me dei conta de que o atendente prescrevera missão impossível: o que ele chama de "vida normal" até pode existir, mas certamente não está ao alcance de quem, como eu neste momento, tem o peito e as costas cravejados de eletrodos, nos quais, tente visualizar, se espetam sete fios, cujas extremidades são plugues encaixados num aparelho preso à cintura por um cinto, não sem antes se enovelarem numa barafunda colorida - branco, preto, marrom, laranja, vermelho, azul e verde escuro. Sacou o panorama? Pense num daqueles astronautas que, para dar uma voltinha no vazio sideral, deixam a nave-mãe, mas a ela permanecem ligados por um feixe de cordões umbilicais de última geração.
É a passos hesitantes que eu, a caminho da rua, cruzo a sala de espera, tão apinhada que todos os males do corpo parecem estar ali representados. Catapultado da terceira para a quarta idade, tudo em torno é ameaçador, e o instinto me faz avançar recurvo qual Corcunda de Notre Dame: ao menor descuido, pode um eletrodo desprender-se, e adeus vida normal.
No táxi, finalmente relaxo, e, num raro momento Poliana, descubro motivos para me sentir aliviado. O monitor Holter que nas próximas 24 horas vai vigiar o comportamento de meu veterano coração não chega a ser um trambolho, ainda que o volume sob a camisa sugira uma inédita hérnia retangular. Tem o tamanho de uma caixinha onde coubessem dois sabonetes, e não pesa muito. Menos sorte tiveram, no final dos anos 1940, as cobaias humanas destacadas para testar os primeiros monitores bolados pelo Dr. Norman J. Holter.
Sim, fui ao Google, vida normal é isso! - e lá me deparei com a foto de um infeliz que, empoleirado numa bicicleta, arqueja ao peso do primeiro aparelho construído pelo célebre (só eu não conhecia) biofísico americano: um fardo com 38 quilos posto sobre as costas. Década e meia se passará até que a estrovenga se miniaturize para ser usada sem estropiar o usuário. Descobri também que o monitor ora aderido à minha carcaça está longe de ser de última ou mesmo antepenúltima geração. Se fosse carro, seria um Monza. Soube, por fim, que o invento já se desdobrou num monitor para cães. Totó e você passeando por aí, na mais total normalidade, cada um com seu aparelhinho, consegue imaginar? Melhor amigo é também pra essas coisas.
No que pode ser problema para os circunstantes, estou, neste verão brabo, proibido de tomar banho antes que se escoem as 24 horas de suplício. No mais, garantiu o atendente, posso fazer o que quiser, inclusive escrever crônica. Havendo "intercorrências", deverei registrá-las num diário até agora em branco. O que mais houver, o espião grudado ao corpo se encarregará de anotar, coletando informações a serem destrinchadas em laboratório, e nada que me ocorra ou faça passará despercebido. Não dá para fingir bom coração. Está de volta o onipresente olho de Deus que na puberdade tentava sabotar meus impulsos de autossatisfação.
Detetive afiado que é, o Holter também vê tudo. Que o elemento, eu, teve um pesadelo às 3h23 da madrugada. Que no parágrafo 9 da crônica em elaboração o elemento embatucou, confrontado com a natureza chinfrim de sua prosa e lamentando uma vez mais não ter nascido Tolstói. E há razões mais sérias para que me preocupe. Se o elemento, com eletrodos e tudo, decidir lá pelas tantas entregar-se a lambanças carnais, é certo que o onisciente Holter, com ganas de voyeur, se inteirará de tudo, tudo mesmo, das preliminares às modalidades, sem esquecer a intensidade da gratificação, se houver. Pior que isso: e se o laboratório descobrir que essa atividade específica nada mais foi do que uma intercorrência - em outras palavras, um evento tão raro que não chega a fazer parte da vida normal do elemento? Tende piedade dele, Holter!
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