O best seller “Assassinato de Reputações — Um Crime de Estado”, do delegado de polícia e ex-deputado Romeu Tuma Junior, vasculha os bastidores do governo petista e conclui que se montou uma estrutura gigante para destruir os adversários políticos.
Era para ser só um susto, mas não
foi o que de fato aconteceu. Ele seria sequestrado. Pediriam o resgate e
este seria pago pelos mandantes do sequestro. A vítima ficaria grata
por terem salvado sua vida. E, assim, o esquema de cobrança de sobretaxa
por serviços prestados a Prefeitura de Sando André, que tanto asfixiava
os empresários da região, seria atenuado. Mas deu tudo errado. O que
estava previsto para ser um susto se transformou numa tragédia. A cena
da desova do cadáver se evidenciava com muita clareza: “as costas [da
vítima] fumegadas com tatuagens de cano quente. Antes de darem o tiro de
misericórdia, encostaram-lhe a arma fervente na pele. Vejo o corpo e
ainda sinto a vibração dessa cena. As mãos, Deus do céu, no formato de
um louva-deus, sugerindo a postura de quem rezava, de quem implorou pela
vida. A boca assumiu um quê monstruoso, desfigurada à bala. Olho para
as reentrâncias do mato e tento estabelecer como teria sido a cena da
desova”. ...
Os escritos acima explicitam a tese do autor a respeito da morte do
ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel. Esta se encontra exposta num
livro repleto de fatos que há pouco foi lançado no mercado. Quem se
propôs a escrevê-los se ateve aos fatos — verídicos ou não, o tempo,
supremo senhor da razão, dirá. Mas ater-se a fatos não basta. Para
produzir as mais de 500 páginas destes escritos torna-se indispensável
conhecer os bastidores do poder, bem como técnicas investigativas
necessárias para montar um quebra-cabeça sedimentado em evidências para
que se possa, assim, chegar às conclusões.
É isso que se propôs a fazer alguém com 35 anos de experiência. Bagagem
o autor tem para atingir esse propósito. Atentem para seu currículo,
que ora reproduzo da contracapa de seus escritos: especialista em
segurança pública e polícia judiciária, vasta experiência em projetos de
cidadania, que integram atuação policial como autoridade brasileira em
vários acordos de cooperação internacional em matéria penal, civil,
extradição e em questões migratórias. Fiquemos por aí para, agora,
explicitarmos os cargos que o personagem destes escritos exerceu. Foi
secretário nacional de Justiça; delegado de classe especial da Polícia
Civil do Estado de São Paulo, delegado comissionado da Polícia Federal e
primeiro chefe da Interpol em São Paulo. Deputado estadual na
Assembleia Legislativa paulista de 2003 a 2007.
E acrescento: filho de Romeu Tuma, ex-diretor da Polícia Federal e
ex-senador da República, recentemente falecido. Romeu Tuma Junior é o
autor dos escritos que pretendem revelar fatos que, se verdadeiros,
maculam biografias e certamente balançam os alicerces do Estado
democrático de direito para se tornar o que ele chama de “Estado
Policial”, um tipo de Estado capaz de assassinar reputações na
velocidade da internet, por meio das instituições que o autor intitula
“Supremo Tribunal do Google”. Um tribunal perverso que expõe
instantaneamente a honra dos investigados para que seja julgada e,
depois do julgamento, lentamente apurada ou arquivada. O “Estado
Policial”, segundo o ex-diretor da Interpol, caracteriza-se por ferir de
morte os valores democráticos, pois faz uso das instituições com o
único e claro propósito: o de “assassinar reputações”. No caso,
reputações daqueles que se colocam em seu caminho. Nesse sentido, a
seguinte máxima cai como uma luva: para os amigos, os favores da lei;
para os inimigos, os rigores.
Não restam dúvidas de que a experiência profissional do ex-secretário
nacional de Justiça se enriquece mais ainda ante os casos que ele
diretamente atuou. E diga-se de passagem: casos muito complicados.
Perguntas que necessitavam de respostas adequadas exigidas pela
sociedade que mantém toda engrenagem do Estado. Assuntos de toda
natureza. Na maioria desses casos que mexeram com a opinião pública,
Tuma Junior atuou ou conheceu com profundidade o entourage em torno
deles. Da extradição (que não acabou acontecendo) de Cesare Battisti à
Operação Satiagraha; do caso Celso Daniel ao caso Nagi Nahas, até a
operação de montagem do supertime do Corinthians, esta atribuída a uma
lavagem de dinheiro comandada pelo bilionário russo que morreu em
Londres, Boris Berezovsky.
Não tenham dúvidas de que as denúncias mais consistentes são aquelas
oriundas de quem conhece o sistema por dentro. Veja-se o caso do
mensalão. Quem denunciou conhecia as engrenagens impossíveis de ser
percebidas por quem está fora do sistema político. Veja-se o caso do
ex-prefeito de São Paulo, já falecido, Celso Pitta. Quem denunciou
partilhava do mesmo leito que ele, conhecia por dentro fatos que nenhum
de nós poderia conhecer.
Quem se dispor a ler a obra do ex-secretário nacional de Justiça
perceberá que duas molas de seu motor emocional moveram sua decisão de
publicar estes escritos: a primeira delas se relaciona à maneira como
ele saiu do governo, motivado por denúncias de que teria envolvimento
com a máfia chinesa de São Paulo (lembram-se da famosa operação trovão
deflagrada pela Polícia Federal?). A segunda tem que ver com a morte do
pai que, de acordo com ele, morreu devido aos acontecimentos
relacionados à sua saída do governo.
Logo no início da leitura de “Assassinado de Reputações”, título do
livro que ora comento, percebi algo de interessante nos escritos, o que
me levou a devorá-los praticamente em três sentadas no meu escritório: a
maneira lógica como os fatos são encadeados (a edição do texto é do
jornalista profissional e professor universitário Claudio Tognolli).
Nesse sentido é que conta a experiência profissional do narrador,
repleta de fatos só possíveis de serem expostos por quem, como ele,
vivenciou o sistema político por dentro. Na descrição de casos de
assassinatos, a maneira como Tuma expõe os fatos no transcorrer de sua
narrativa, a máxima de que os mortos não falam não é verdadeira. Os
mortos falam para quem tem experiência para perceber a ambiência em
volta dos crimes. É mais ou menos como observar uma obra de arte, ela
fala para quem entende a mensagem do artista que a concebeu. Tuma Junior
conhece bem essa linguagem e procurou expô-la na sua narrativa.
Assassinato de reputações no Supremo Tribunal do Google
Facada ardida pelas costas + vazamento a conta-gotas + uso de
lugares-tenentes e demais teleguiados + fabricação de dossiês: é o
somatório que mais expressa os fatos expostos pelo ex-secretário
nacional de Justiça Romeu Tuma — naquilo que chama de “forma petista” de
governar. Adicione-se a esse somatório a maneira como os fatos são
apurados por quem tem o dever republicano de apurá-los. Quanto a isso,
Tuma Junior não perdoa o próprio órgão ao qual serviu: a Polícia
Federal. O ex-diretor da Interpol procura demonstrar por A + B como a PF
tem sido usada como instrumento no assassinato de reputações. “Prendem
suspeitos e jogam a notícia na mídia (Google), porque não deu tempo
para investigar... Antigamente, faziam as provas e, depois, prendiam.
Vejam a minha conduta em 35 anos de polícia: primeiro, eu fazia a prova,
depois é que a Justiça me autorizava a prender. Hoje, eles prendem para
depois fazer a prova. Onde nós estamos?”
Para Tuma Junior, gravar, editar e vazar a conta-gotas transforma-se em
“tortura psíquico-física” que materializa algo novo em termos de
sociedade de informação: o “pau-de-arara virtual”.
Não restam dúvidas de que a sociedade que paga seus impostos deve tomar
conhecimento dos fatos quando investigados e provados. Se forem
verídicas as afirmações do autor, então, a lógica tornar-se-á invertida e
aí estaremos no pior dos mundos, onde os meios de um projeto de poder
passam a justificar os fins. Materializar-se-ia, assim, a perversidade
do Estado leviatã definido pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, aquele
Estado que detém poder absoluto sobre os indivíduos — inclusive sobre
sua reputação.
A composição do leviatã tumista se incorpora mais ainda com a escolha
de “alvos”. Quanto a isso, procura, o autor, separar alhos de bugalhos.
Para ele, uma coisa é partir do crime para o criminoso. Outra coisa, bem
diferente, é partir do criminoso (do alvo que se quer atingir) para o
crime. “Tem polícia que investiga crimes e tem polícia que escolhe
‘alvos’”, enfatiza.
Em inúmeras partes de seu texto, a metralhadora tumista aponta e
descreve situações envolvendo esses alvos. Os ex-governadores José Serra
(São Paulo), Tasso Jereissati (Ceará), o governador de Goiás, Marconi
Perillo, a ex-primeira-dama Ruth Cardoso, o ex-senador Demóstenes
Torres e por aí vai. Quatro ligados ao PSDB e um ao DEM.
Resumamos, então, algumas dessas ordens num saco só: “Dr. Tuma Junior:
fulmine o Serra e os tucanos com o dossiê da Alston (supostos pagamentos
de propinas para favorecimentos na construção de partes do metrô de São
Paulo); Dr. Tuma Junior: faça um favor ao Lula e fulmine o senador
Perillo”.
Nesse sentido, Marconi + Mensalão = CPI do Cachoeira. Esta é a equação
mais adequada que pode, assim, ser resumida: a CPI do Cachoeira foi
deflagrada para atingir dois alvos específicos: o governador de Goiás,
do qual Lula “tem ódio mortal”, e servir de contraponto para o mensalão.
No caso do ex-senador Demóstenes Torres, creio ser oportuno reproduzir
na íntegra o que tem a dizer Tuma Junior: “Eles arquivaram um relatório
de inteligência feito contra ele e que datava de 2006. Por que não
fizeram nada na época? Porque não interessava. O tal relatório ficou
cozinhando nas gavetas do bunker. No momento político oportuno, tais
papéis saíram do forno para atingir Demóstenes, figadal adversário do
governo petista. Tudo isso porque o governo estava operando para
Demóstenes migrar para a base petista aliada. E quando definitivamente
ele não foi, chegou a hora de o galo cantar; e o relatório de
inteligência veio à luz do dia e para toda a mídia”. É desse modo que o
julgamento no Supremo Tribunal do Google não perdoa: fulmina reputações
na velocidade do pensamento.
Para atingir não propriamente a saudosa Ruth Cardoso, mas o que ela
diretamente representou — o governo Fernando Henrique —, o ex-secretário
nacional de Justiça relata o uso de um laboratório científico na coleta
de dados. “O laboratório era cientificamente preciso: se eu programasse
os computadores para, por exemplo, depósitos de R$ 1,00 feitos por
mulheres, em São Paulo, às cinco da tarde, chegaria nos autores. Foi
assim que descobrimos, por exemplo, as mulheres que lavavam dinheiro
para o PCC”. Para quem não se lembra, a mídia divulgou os gastos
pessoais da primeira-dama quando seu marido foi presidente. O uso
indevido de um laboratório desses para especular despesas de uma cidadã
se constitui num atentado à democracia. Se verdadeiro o uso desse
laboratório, eis aí mais um exemplo de um instrumento de governo usado
com o fim específico do que nos aponta Tuma Junior em seus escritos: o
de assassinar reputações no Supremo Tribunal do Google.
Impedir extradição de Cesari Battisti foi gesto de gratidão do PT a Greenhalgh
Se existe algo que a sociedade brasileira se habitou a tomar
conhecimento pela mídia, nos últimos anos, foram temas sobre as
operações da Polícia Federal. Na condição de delegado e ex-secretário
nacional de Justiça, Tuma Junior teve participação ativa na maioria
desses casos. Se não participou diretamente de todos eles, conhecia a
fundo o desenrolar dos seus bastidores. Nesse sentido, na condição de
especialista no assunto, os escritos do ex-diretor da Interpol em São
Paulo ajudam a entender a base dessa montanha. E, para entendê-la,
faz-se necessário ligarmos esta ao seu cume que aparece na mídia. Da
base se sai do palco para aparecerem os atores como eles realmente são:
virtudes e fraquezas humanas afloram. Creiam: das rivalidades entre
instituições — leia-se Agência Brasileira de Informações (ABIN) versus
Polícia Federal (PF) —, a rivalidades entre pessoas são expostas em
“Assassinato de Reputações”.
A metralhadora tumista fulmina a conduta até de colegas de profissão,
como foi o caso do delegado (hoje, deputado federal) Protógenes Queiroz.
“Eu vivo do meu salário”, afirma para, em seguida, disparar:
“Protógenes Queiroz, segundo o site ‘Consultor Jurídico’, tem sete casas
cuja origem não sabe justificar ao público, e um bom dinheiro embaixo
do colchão”. E aponta mais: “Protógenes cometeu falhas inexplicáveis,
deixando dúvidas se não teriam sido até propositais”.
Um novo giro da metralhadora se direcionou ao ex-presidente Lula ao
revelar, logo nas primeiras páginas, que este fora informante do
Departamento de Ordem Política e Social (Dops) na época em que o
ex-presidente era líder metalúrgico em São Bernardo do Campo. Palavra de
Tuminha, que já era delegado e o Tuma chefão do Dops. Nem o morto Celso
Daniel escapou. Motivo: os mais de 100 processos que tinha a
administração do prefeito assassinado no Tribunal de Contas de São Paulo
demonstram que ele “não era santo”.
A fogueira de vaidades se incendeia na base da montanha. É o caso de
não se darem o atual e ex-diretor da PF — Luiz Fernando e Paulo Lacerda.
Ou a rivalidade entre Lacerda e o então ministro da Justiça, Nelson
Jobim. Ou até mesmo a vaidade do atual governador do Rio Grande do Sul e
ex-ministro da pasta, Tarso Genro.
Vaidade é um pecado, mas, afinal de contas, quem não a tem? Ainda mais
quando se está no centro do poder. Até mesmo o próprio autor é tragado
por ela ante os sucessivos autoelogios que faz no transcorrer de sua
narrativa dos fatos. “Noves fora” a fogueira das vaidades, creio que uma
das partes interessantes do livro é a maneira como um profissional da
investigação expõe, com a propriedade de sua experiência, como se dá a
arte da investigação partindo de onde sempre se deve partir: do crime
para o criminoso.
Vale, ainda, ressaltar que outros casos memoráveis como o do banqueiro
Salvatori Cacciola, Daniel Dantas, Nagi Nahas ou a extradição de Cesari
Battisti são revelados, em detalhes, pela metralhadora tumista. Diz o
que acha, o que tem de dizer. Como foi o caso do interesse do Palácio do
Planalto na não extradição de Battisti: pagar uma dívida de gratidão
com anos de lealdade ao Partido dos Trabalhadores do advogado do
italiano que seria extraditado — Luiz Eduardo Greenhalgh. “Greenhalgh
trabalhou bem nos bastidores para facilitar a missão que impôs aos seus
credores do governo”, aponta o autor.
Fiquemos por aqui, pois, se formos a fundo nas partes, perderemos,
cansaremos o leitor. Além disso, não teríamos espaço suficiente para
detalharmos o que nos relata o autor. Fica a sugestão da leitura do
livro — que está muito bem-escrito a la Sherlock Holmes.
Em que mundo estamos? Para onde iremos?
Este é ano eleitoral e, no transcorrer de 2014, será debatido e
decidido para onde irá o país. Ao encerrar a leitura do livro de Romeu
Tuma Junior, creio ser oportuna a seguinte indagação conclusiva: em que
mundo estamos? Para onde iremos?
A prevalecer a verdade tumista, o Brasil de hoje nos leva para uma
crise das instituições em cujo contexto se corporificou o “Estado
Policial”, tão evidenciado por Romeu Tuma Junior em seus escritos. Creio
que deles emergem inúmeras perguntas que necessitam ser respondidas no
processo eleitoral que ora se inicia. Se a verdade está com Tuma Junior,
então, certamente, estamos no pior dos mundos do leviatã hobbesiano:
aquele em que o “Estado Policial” assassina reputações na velocidade da
sociedade informacional. Dizem que o tempo é o senhor da razão. Nada
melhor que o tempo e o julgamento da história para colocar os atores do
processo político no seu devido lugar. Só a partir daí seremos capaz de
dizer para onde iremos.
Salatiel Soares Correia é engenheiro e mestre em Planejamento pela Unicamp.
Fonte: Jornal Opção -
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