A beleza doída - FERREIRA GULLAR
Não havia ali urubus engaiolados ou casais nus para constranger os visitantes da mostra
Se a vinda do papa Francisco ao Rio de Janeiro já foi, por si só, um presente à cidade, o Vaticano procurou ampliar essa dádiva enviando ao Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) uma coleção de obras de seu acervo e de outras instituições italianas que muito dificilmente teríamos a oportunidade de ver fora de lá e, menos ainda, vê-las reunidas no mesmo lugar.
No entanto, durante a visita do papa, um número relativamente pequeno de pessoas foi ver aquela mostra, não só porque preferiu ver o próprio papa e participar dos atos religiosos, realizados em vários pontos da cidade e particularmente na praia de Copacabana, mas também por não ser fácil, naquele período, deslocar-se para certos pontos da cidade e, pior ainda, de certos pontos.
Este foi o meu caso, residente em Copacabana, onde se concentrava verdadeira multidão de fiéis que vinham participar das cerimônias. Não eram, claro, 3 milhões de pessoas (já que isso equivaleria a mais de 40 estádios do Maracanã lotados). Mas era gente suficiente para me impedir de sair do bairro.
No primeiro domingo, após a partida do papa, porém, fui ao MNBA apreciar as obras-primas ali reunidas. Felizmente, havia um bom número de visitantes, mas não a multidão que temia encontrar ali. Pude, assim, percorrer as salas da exposição, criteriosamente montada, e viver a experiência única que só a verdadeira arte oferece.
Não havia ali urubus engaiolados, casais nus para constranger os visitantes nem penduricalhos de mau gosto flutuando sobre nossa cabeça. Não, nada disso: havia só pintura, imagens e cenas, criadas pelo talento e o domínio técnico da linguagem pictórica.
Foi uma experiência impactante, já que havia anos não via muitas daquelas obras, e nem foi a mesma impressão que me causaram agora. A figura de São Januário decapitado, de Caravaggio --que ainda não tinha visto--, teve sobre mim um impacto poderoso. O jogo de luz e sombra, próprio à linguagem desse pintor, já dramático por si mesmo, neste caso alcança especial dramaticidade.
Mas não só essa obra me atingiu naquela visita. Ainda que de outro modo, as pinturas de Da Vinci, Michelangelo e Ticiano, naquela tarde, na penumbra daquelas salas, atingiram-me, fosse com a sutileza das linhas e dos tons de cor, fosse pela expressão facial do Cristo, do apóstolo Pedro ou da Virgem Maria, a nos passar a sua dor profunda.
Até então, não havia me dado conta do sentimento de culpa que envolvia todas aquelas obras, todas aquelas cenas e figuras, como se a alegria, o prazer de viver, não coubesse naquele universo por ser contrário à fé nas palavras de Cristo e uma traição ao martírio a que se submetera para redimir a humanidade do pecado original. Ao terminar o percurso daquelas, e sair do ambiente das salas, senti-me aliviado, pois voltava à normalidade do mundo sem culpa.
E ocorreu que, ao sair da mostra, encontrei-me no hall interno do MNBA, onde estão várias cópias de obras-primas da escultura grega, a começar pela Vitória de Samotrácia. Assim foi que, ao sair do universo sofrido da arte cristã, deparei-me com a arte sem culpa dos escultores helênicos, os quais, ao contrário daqueles, exaltam a beleza e a sensualidade do corpo humano, seja da Vênus de Milo, seja dos atletas que lutam nus, ou de Apolo que exibe sem pudor a beleza de sua nudez.
Enfim, ali estava eu, diante de outra cultura, que não via o corpo humano como origem de nenhum pecado e, sim, pelo contrário, como fonte de felicidade e de prazer.
Curioso é observar que também foi nessa civilização sem culpa que nasceu a filosofia, ou seja, a tentativa de ver a existência como algo que podia ser entendido racionalmente. E foi essa confiança na possível ordem objetiva do mundo que, séculos mais tarde, deu origem à ciência.
Em meio a essas reflexões, lembrei-me de um pintor, Filippo Lippi, que, embora monge, não pintava com culpa, mas para exaltar a beleza tranquila dos santos e do mundo. Não por acaso, fugiu com uma bela noviça e com ela teve um filho, que se tornou pintor como o pai. Viveu e morreu sem culpa, amando a vida e as mulheres.
Mais uma razão para saudarmos o papa Francisco, que substitui a culpa pela solidariedade.
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