Médicos estrangeiros - CORA RÓNAI
Se há pessoas sem atendimento em algum lugar, e se há profissionais dispostos a atendê-las, temos mais é que recebê-los de braços abertos
Quando os primeiros médicos estrangeiros chegaram ao Brasil, o jornal trouxe a foto de uma jovem espanhola, acompanhada do filhinho. Ela veio trabalhar numa aldeia indígena no Amazonas, e fiquei, confesso, com uma ponta de inveja: se eu fosse jovem e médica, este é um trabalho que teria adorado fazer. Pensei na sorte do garotinho, que tão pequeno terá a chance única de mergulhar numa cultura completamente diferente da sua, e nas ricas lembranças que mãe e filho levarão pela vida afora.
Senti carinho pela médica e por seu menino, como sinto carinho por todos os profissionais que se dispõem a sair da sua zona de conforto para cuidar do nosso planeta e de seus habitantes. Sou grata aos médicos que vieram para o Brasil cuidar dos meus compatriotas desassistidos dos cafundós, embora, como todo mundo, tenha sérias dúvidas a respeito do que poderão fazer sem um mínimo de condições. Se nos hospitais do Rio falta de tudo, de soro a esparadrapo, ninguém precisa de muita imaginação para adivinhar o cenário desolador que os espera.
Há quem reclame que os estrangeiros foram dispensados do Revalida. É uma reclamação justa, ainda que inútil, dadas as circunstâncias. Imagino que o exame sirva para comprovar até que ponto os profissionais estão familiarizados com a medicina atual, mas se há uma coisa que os estrangeiros não vão encontrar nas cidades para onde estão sendo designados é medicina atual: poderão requisitar o mais elementar raio-X? Ou um hemograma que fique pronto antes de ficar desatualizado? Terão ao menos material de sutura? Antibióticos? Vermífugos?
Quer dizer: serão, na prática, pouco mais que curandeiros, por melhor que tenha sido a sua formação. E, ainda assim, é possível que alguns se saiam muito bem, porque há pessoas que têm o dom de curar com um nada. Um dos grandes livros que li, e que recomendo a todos os angloparlantes, é “The cunning man”, do médico e escritor canadense Robertson Davies, que conta a história de um desses extraordinários curadores.
Há quem reclame também que os médicos não vão conseguir se entender com os seus pacientes por não saberem falar português. Isso é detalhe, e não muito importante. Em que língua a jovem médica espanhola vai se comunicar com os índios? Aliás, em que língua se comunicam os médicos da Funai com tribos recém-descobertas? E os Médicos Sem Fronteiras, que vêm de todos os países do mundo e vão para onde são necessários?
Levando o exemplo ao extremo, não custa lembrar que os bons veterinários sempre trataram toda a sorte de bichos com bastante sucesso, sem entender uma só palavra do que miam ou relincham.
O fato é que se há pessoas sem médicos em algum lugar, e se há médicos dispostos a atendê-las, temos mais é que recebê-los de braços abertos, sejam turcos, chilenos ou iemenitas. Não chego ao extremo de dizer que é melhor um mau médico do que médico nenhum, porque os maus médicos matam mais do que a natureza sozinha — mas até sob este aspecto os estrangeiros não poderão fazer muita coisa, por absoluta falta de condições e de medicamentos.
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Dito isso, acho escandalosa, ultrajante mesmo, a importação dos médicos cubanos. Não por serem cubanos, é óbvio, nem por duvidar da qualidade da sua formação, mas pela forma enviesada como a questão foi e está sendo conduzida. Nada justifica a proibição de trazerem consigo as suas famílias; nada justifica que o governo cubano receba os seus salários; nada justifica que o Brasil, um país que se quer democrático, compactue com essa mercantilização que transforma pessoas em commodities.
Os defensores do tráfico humano alegam que, consultados, os médicos cubanos não se queixam, e que, para eles, qualquer quantia que venham a receber, por menor que seja, será superior ao que receberiam em Cuba. É um argumento ofensivo, que considera correta uma remuneração vil porque, em outros países, poderia ser pior. Ora, assim se pode justificar qualquer afronta à dignidade humana, a começar pela semiescravidão dos costureiros bolivianos que trabalham para as grifes de luxo de São Paulo: por incrível que pareça, eles também estariam em pior situação em La Paz.
O artigo 461 da CLT é claro. Ele estipula que trabalhadores com função idêntica, exercendo idênticas tarefas para o mesmo empregador, devem receber salários iguais, sem distinção de sexo, idade ou nacionalidade.
Chama-se a isso justiça. Enquanto os médicos cubanos não tiverem condições de trabalho iguais às dos demais médicos estrangeiros, o Brasil estará compactuando com uma forma de servidão aviltante, que não lança desdouro sobre o servidor, mas cobre de vergonha indelével o empregador.
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Ah, sim: como fica a situação dos brasileiros formados em Cuba que estão aproveitando o programa do governo para voltar ao Brasil? Pouco ouvi falar sobre eles, e menos ainda sobre a sua situação legal. O seu dinheiro também será enviado para Havana? Ficarão dispensados do Revalida mesmo trabalhando em seu (nosso) próprio país?
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