LEXUM
“There are three kinds of lies: lies, damned lies, and statistics.”[1]
O artigo de Miguel Reale Júnior, publicado no Estadão, é um exemplo cristalino do distanciamento entre a elite acadêmica e a realidade do cidadão comum. Embalado em uma retórica de pretensa preocupação com as instituições democráticas, o texto evidencia, na verdade, um julgamento presunçoso das escolhas populares, sustentado por estatísticas duvidosas e um elitismo que insiste em dizer ao povo o que ele deve pensar.
O autor recorre a números supostamente extraídos de pesquisas, mas nada informa sobre a metodologia empregada, as perguntas feitas ou o contexto das respostas. Sem esses elementos essenciais, as estatísticas apresentadas não passam de figuras decorativas, utilizadas para conferir uma aparência de seriedade a argumentos frágeis. Lembram os versos do meu tio-bisavô, Raimundo Corrêa, em Mal Secreto[2]:
“Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face…”
Aqui, as estatísticas se tornam essa máscara, escondendo as verdadeiras intenções de um elitismo que, sob o pretexto de objetividade, despreza o discernimento popular. Por trás da fachada de neutralidade e preocupação com a democracia, o texto revela, em verdade, um espírito que devora e punge, desconectado da realidade vivida por aqueles que deveriam ser ouvidos. Afinal, que credibilidade têm números que não mostram como foram obtidos? No campo da lógica, dados assim são apenas o eco vazio de uma autoridade autodeclarada.
Ao invés de buscar entender as razões por trás das escolhas populares, Reale Júnior as descarta como equivocadas, inferiores e, pior, perigosas. É o mesmo paternalismo de sempre: nós, os iluminados, sabemos o que é melhor para vocês, os ignorantes. Essa postura não só despreza a democracia, mas também revela um desdém pelas vozes que não ecoam nos corredores da academia.
Lendo o texto, não pude deixar de lembrar, também, de Simão Bacamarte, o célebre protagonista de O Alienista, de Machado de Assis. Assim como Bacamarte, que decidiu internar praticamente toda a população de Itaguaí em sua Casa Verde, convencido de que apenas ele tinha o conhecimento necessário para diagnosticar e corrigir os desvios mentais da sociedade, o autor do artigo parece se ver como um árbitro supremo da democracia. Tal como o alienista, Reale Júnior impõe sua visão elitista e arbitrária sobre o povo, que, em sua análise, não é capaz de entender o que é melhor para si. No fim da obra de Machado, Bacamarte acaba isolado, vítima de sua própria obsessão. A alegoria é perfeita: um intelecto que, ao buscar impor seu modelo ideal ao mundo, ignora a complexidade e a autonomia dos indivíduos, culminando em uma desconexão irreversível com a realidade.
O artigo está impregnado de falácias e atalhos cognitivos que enfraquecem ainda mais sua argumentação. Destaco algumas. Há uma clara generalização apressada ao tratar eventos pontuais, como leis ou decisões regionais, como sintomas de uma crise democrática generalizada. A complexidade da sociedade brasileira é reduzida a uma caricatura. O texto parece fruto de um subconsciente apelo à autoridade, onde a formação acadêmica do autor é usada como substituto para argumentos consistentes. Não basta ser jurista renomado; é preciso convencer com ideias claras e fáceis de compreender.
Há uma passagem que merece destaque: “Em suma, o povo prefere a democracia, mas rejeita a política e o debate. Quer a liberdade, mas não o ônus da vivência do confronto de ideias. Assim, ganham a antipolítica e as Forças Armadas, e as polícias surgem como instituições mais confiáveis”. Esse trecho dá a entender que o cidadão teria se colocado diante da seguinte escolha: confiar cegamente nas instituições brasileiras, sem críticas, ou correr aos braços dos militares.
Essa falsa dicotomia é uma abordagem simplista que ignora os problemas institucionais graves do país – como, por exemplo, a constante violação ao princípio sagrado da separação de poderes – que leva o povo à descrença institucional. Por fim, há a heurística da disponibilidade, quando o autor exagera o peso de eventos recentes, como se fossem representativos de toda a sociedade, uma tática que distorce a realidade para validar um ponto de vista enviesado.
O mais grave no artigo não é a fragilidade dos argumentos, mas a postura que ele revela. Reale Júnior alega que há uma “antipolítica” conduzindo o povo a discursos “golpistas”, mas ignora que o que realmente ocorre é o oposto: uma parcela significativa da população, cansada das atuais instituições e organizações que regem o país, tem buscado contestá-las dentro dos limites do debate democrático. Isso não é antipolítica, muito menos golpismo; é a essência da democracia em ação. A tentativa de desqualificar esse movimento como antidemocrático revela uma desconexão com a realidade e um desprezo pelo direito do povo de questionar o status quo.
Além disso, o artigo recorre a dados questionáveis, como a suposta opinião popular de que as redes sociais seriam causadoras de confusão ou desinformação e de que o povo não gosta de debater política. Tais afirmações não se sustentam à luz dos fatos. As redes sociais, longe de promoverem a apatia, têm democratizado o debate de ideias e politizado a sociedade como um todo, permitindo que vozes antes ignoradas participem das discussões públicas.
Nos últimos anos, o interesse político cresceu em todas as classes sociais justamente devido a essa abertura proporcionada pelas redes. O que o autor interpreta como desinformação ou antipolítica é, na verdade, a democratização do espaço público, algo que deveria ser celebrado, e não atacado. Ao tratar o povo como incapaz de decidir por si próprio, Reale Júnior se coloca, conscientemente ou não, como um adversário do próprio princípio democrático.
O texto falha em apresentar diagnósticos claros ou soluções práticas. Em vez disso, prefere apontar o dedo para a população e para uma suposta ameaça democrática que, se existe, parece residir muito mais na desconexão das elites com a realidade do que nas escolhas populares. A democracia não precisa de juízes iluminados em pedestais – muito menos de juristas beletristas pouco afeitos ao mundo real –, mas de diálogo, respeito e soluções concretas. E se há algo que realmente ameaça a democracia, é o desprezo dos autoproclamados guardiões da liberdade pelo povo que deveriam servir.
O caminho para superar essa desconexão entre elites e sociedade está na adoção do Constitucionalismo Republicano. Esse modelo, baseado no respeito ao texto legal, nos direitos naturais e na separação de poderes, oferece uma estrutura sólida para fortalecer tanto a democracia quanto o republicanismo. Ao devolver o protagonismo às instituições e limitar o arbítrio judicial, o Constitucionalismo Republicano reafirma os princípios fundamentais que sustentam a liberdade e a justiça. Esses princípios, defendidos pela Lexum, são claros: o Estado existe para preservar a liberdade; a separação de poderes é essencial para a nossa Constituição Federal; e a função do Judiciário é dizer o que a lei é, e não o que ela deveria ser. Somente por meio dessa perspectiva, que valoriza a soberania popular e a segurança jurídica, será possível resgatar a verdadeira essência da democracia brasileira.
Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, um dos Fundadores e Presidente da Lexum
[1] A frase “Lies, damned lies, and statistics” é frequentemente atribuída a Benjamin Disraeli, primeiro-ministro britânico, mas não há registros concretos de que ele tenha dito ou escrito essa expressão. A popularização da frase ocorreu através de Mark Twain, que a mencionou em Chapters from My Autobiography (1906), creditando-a a Disraeli: “There are three kinds of lies: lies, damned lies, and statistics.” Contudo, pesquisas posteriores não conseguiram encontrar evidências que conectem Disraeli à autoria da frase, deixando sua origem exata incerta.
[2] Mal secreto – Raimundo Corrêa
Se a cólera que espuma, a dor que mora
Na alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
*Artigo publicado originalmente no site da Lexum.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/oracao-do-jurista-pai-perdoai-o-povo-pois-ele-nao-sabe-escolher-decidir-ou-votar/
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