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No Brasil, poucos princípios constitucionais são tão amplamente invocados quanto a dignidade da pessoa humana. Está no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, como um dos fundamentos da República. Mas, ao longo dos anos, o conceito foi progressivamente distorcido, transformando-se em um argumento genérico para justificar qualquer ampliação do poder estatal. Em vez de atuar como um limite contra os abusos do Estado, passou a servir como uma ferramenta para sua expansão. Essa inversão precisa ser corrigida.
A dignidade não é uma criação do Estado, nem um direito que pode ser concedido ou retirado por ele. Ela pertence ao indivíduo por sua própria condição humana. Justamente por isso, seu significado deve ser interpretado à luz do Public Meaning Originalism – a metodologia interpretativa que busca compreender a Constituição conforme o significado público das palavras no momento em que o texto foi promulgado. Quando a Constituição de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, o entendimento prevalente não era o de um princípio aberto e expansivo, que legitimaria qualquer intervenção estatal em nome de um ideal subjetivo de bem-estar. Pelo contrário, a dignidade estava ligada à garantia da liberdade individual, à proteção contra abusos do Estado e à preservação dos direitos fundamentais negativos – aqueles que asseguram a autonomia do indivíduo ao limitar o poder estatal.
Esse entendimento se alinha ao Cânone da Interpretação Contextual (Whole-Text Canon), que exige que a Constituição seja lida como um sistema coeso, onde cada dispositivo deve ser interpretado em harmonia com os demais. Assim, a dignidade da pessoa humana não pode ser tratada como um princípio isolado e absoluto, mas sim como parte integrante do arcabouço de direitos fundamentais expressamente protegidos no artigo 5º.
Os direitos fundamentais negativos, como a liberdade de expressão (art. 5º, IV), a propriedade privada (art. 5º, XXII), a livre iniciativa (art. 170, caput), a inviolabilidade da vida e da privacidade (art. 5º, X), são a essência do que significa viver com dignidade. São esses direitos que permitem que cada indivíduo tome suas próprias decisões e molde sua vida conforme seus valores e aspirações. No entanto, ao longo dos anos, a dignidade foi reconfigurada como um conceito vago e elástico, manipulável conforme os interesses de quem detém o poder.
Essa mutação conceitual tem consequências graves. Quando a dignidade se torna um argumento para relativizar contratos, restringir liberdades ou justificar políticas públicas paternalistas, ela deixa de ser um direito individual para se tornar um instrumento de coerção. Se um contrato foi livremente pactuado, mas depois é anulado sob o pretexto de que uma das partes se viu em uma posição desvantajosa, estamos substituindo a responsabilidade individual pela tutela estatal. Isso contraria frontalmente o art. 5º, inciso II, que estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Se discursos são censurados porque podem ferir a “dignidade” de determinados grupos, estamos colocando a subjetividade acima do direito inalienável à liberdade de expressão, assegurada pelo art. 5º, inciso IV. Se a dignidade é usada para justificar a criação de direitos sociais ilimitados, ignorando restrições constitucionais e responsabilidade fiscal, estamos permitindo que o Estado se expanda indefinidamente, em detrimento da liberdade e da segurança jurídica.
O uso indevido da dignidade viola o Cânone da Interpretação Contra a Supremacia de Cláusulas Genéricas (Presumption Against Superfluity), pois converte um princípio geral em um instrumento de sobreposição arbitrária, corroendo direitos fundamentais expressamente protegidos. Essa distorção inverte a lógica constitucional, permitindo que um conceito aberto seja utilizado como justificativa para restringir liberdades essenciais. O resultado é um desequilíbrio perigoso, onde o princípio da dignidade deixa de proteger o indivíduo e passa a ser um escudo para a ampliação do poder estatal.
O problema central dessa abordagem é que ela subverte o próprio conceito de dignidade. Se a dignidade passa a ser garantida pelo Estado, então ela não é mais um direito natural do indivíduo – é uma concessão do governo. Se ela pode ser reinterpretada conforme os interesses de legisladores, burocratas ou juízes ativistas, então não há mais um limite claro para o poder estatal. E quando não há limites para o Estado, qualquer coisa pode ser justificada – inclusive a supressão de liberdades fundamentais sob a desculpa de protegê-las.
A interpretação originalista, ao focar no significado público das palavras na época de sua promulgação, oferece a única saída legítima contra essa distorção contemporânea. E aqui um ponto crucial precisa ser enfatizado: a Constituição de 1988 foi construída como uma barreira contra os abusos do Estado, surgindo em um contexto de transição democrática e rejeição ao autoritarismo estatal. O próprio debate constituinte reflete essa preocupação: a limitação do poder estatal era o eixo central da nova ordem constitucional. O público, naquele momento, entendia que a dignidade estava associada à proteção contra interferências indevidas do Estado, e não a um princípio maleável que poderia ser usado para justificar a ampliação ilimitada do seu poder. A Constituição surge justamente para consolidar um novo pacto social baseado na limitação do Estado e na afirmação dos direitos individuais, garantindo que os abusos do passado não se repetissem. Portanto, qualquer interpretação que use a dignidade para relativizar liberdades fundamentais ou para criar direitos que não estão expressamente previstos na Constituição desvirtua seu significado original e compromete a segurança jurídica.
Essa leitura é reforçada pelo Cânone da Interpretação Contra o Poder Arbitrário (Rule of Lenity), que exige que textos normativos sejam interpretados de modo a não expandir excessivamente o poder estatal sobre os cidadãos. Como a Constituição de 1988 nasceu como uma resposta ao regime militar, é evidente que seu objetivo era limitar o Estado, e não lhe conceder um princípio aberto para justificar novas intervenções.
Tal entendimento encontra respaldo na própria história da elaboração da Constituição de 1988. Nos Diários da Assembleia Nacional Constituinte, observa-se que a dignidade da pessoa humana foi debatida como um princípio orientador, mas não como um direito absoluto ou superior aos direitos fundamentais. Além disso, uma análise da jurisprudência inicial do Supremo Tribunal Federal (STF) revela que, nos anos imediatamente posteriores à promulgação da Constituição, a dignidade era interpretada em harmonia com os direitos fundamentais, e não como um critério autônomo para suplantá-los. Esse entendimento é reforçado pela ausência da dignidade nas constituições brasileiras anteriores a 1988 e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que vincula diretamente a dignidade à proteção das liberdades individuais contra o arbítrio estatal. Assim, até 1988, tanto no debate jurídico quanto na percepção pública, a dignidade era vista como um princípio limitador do Estado e não como um salvo-conduto para sua expansão.
Eis, portanto, um exemplo claro do Cânone da Harmonização (Harmonious-Reading Canon), que determina que a interpretação constitucional deve evitar conflitos internos entre dispositivos. A leitura correta da dignidade da pessoa humana deve ser aquela que a mantém integrada ao conjunto de direitos fundamentais, e não como um princípio que os sobrepõe ou os esvazia.
A concepção originalista se alinha à teoria do First Come Rights, Then Comes Government, defendida por Randy Barnett. Segundo essa visão, os direitos individuais preexistem ao Estado – eles não são criados pelo governo, mas sim reconhecidos por ele. O papel do Estado, portanto, não é conceder direitos, mas assegurá-los contra violações. No momento em que o governo passa a se comportar como se fosse o próprio originador da dignidade, ele usurpa o lugar do indivíduo e se coloca como seu tutor. Isso inverte completamente a ordem natural do constitucionalismo: primeiro vêm os direitos, depois vem o governo para protegê-los.
Essa visão não apenas se alinha, mas é reafirmada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Seu artigo 1º estabelece que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, deixando claro que a dignidade é inerente à condição humana e não uma concessão estatal. Essa compreensão foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro através do artigo 5º, §3º, da Constituição, que confere status de emenda constitucional a tratados internacionais sobre direitos humanos. O artigo 3º reafirma esse princípio ao garantir que “toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, deixando claro que a dignidade está diretamente vinculada à proteção das liberdades individuais contra interferências estatais indevidas. Ainda mais relevante, o artigo 30 reforça que nenhuma interpretação da Declaração pode ser usada para destruir os direitos e liberdades nela reconhecidos, o que significa que nenhuma interpretação distorcida do princípio da dignidade pode ser usada para enfraquecer as garantias fundamentais da liberdade e da autonomia individual.
A força da Declaração Universal e de outros tratados internacionais sobre direitos humanos encontra respaldo na Constituição Federal de 1988, que no artigo 5º, §3º, estabelece que tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados pelo Congresso Nacional em dois turnos, por três quintos dos votos, equivalem a emendas constitucionais. Isso reforça que os princípios consagrados em tais documentos têm peso constitucional e devem ser interpretados de forma compatível com a proteção das liberdades individuais.
O reconhecimento dos tratados internacionais segue o Cânone da Interpretação Contra a Inconstitucionalidade (Presumption of Constitutionality), que impede que um princípio genérico, como a dignidade, seja interpretado de forma a contradizer normas expressamente incorporadas à Constituição. Dessa forma, qualquer leitura da dignidade da pessoa humana deve respeitar a hierarquia constitucional e a força normativa dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Sublinhe-se, por oportuno, que o próprio artigo 5º, §2º da Constituição reforça que os direitos e garantias fundamentais não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, o que significa que a dignidade da pessoa humana deve ser compreendida como uma proteção da liberdade individual e não como um salvo-conduto para violações estatais. Além disso, o artigo 60, §4º, ao definir as chamadas cláusulas pétreas, protege os direitos fundamentais contra alterações legislativas que possam esvaziar seu conteúdo, garantindo que não possam ser flexibilizados ao sabor das conveniências políticas do momento.
Essa leitura está alinhada ao Cânone do Significado Ordinário (Ordinary-Meaning Canon), que estabelece que os termos da Constituição devem ser interpretados conforme seu significado comum na época de sua promulgação. Em 1988, “dignidade da pessoa humana” era compreendida como um conceito de limitação do Estado, e não como uma justificativa para restringir direitos individuais.
Portanto, a correta aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana não está em usá-lo para expandir o poder estatal, como se fosse um mantra jurídico capaz de transformar desejos políticos em direitos, mas em aplicá-lo como um limite contra esse poder. O uso indiscriminado da dignidade como uma cláusula aberta, invocada sem critérios claros, reflete um pensamento mágico que desconsidera a necessidade de interpretação sistemática da Constituição e ignora as garantias fundamentais expressamente estabelecidas.
Dignidade não pode ser um conceito maleável, moldado conforme os interesses políticos do momento. Ela significa o direito inalienável do indivíduo de viver livremente, sem o risco de que o Estado reescreva as regras do jogo para atender a impulsos ideológicos, interesses corporativistas ou agendas paternalistas. O verdadeiro perigo para a dignidade da pessoa humana não é a ausência do Estado, mas sim sua presença excessiva e opressiva, sufocando as liberdades que deveria proteger. Porque quando o Estado redefine o que é digno, ele também decide quem é indigno – e nenhum povo livre pode aceitar isso.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.
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