Lexum
A recente nota publicada na Coluna do Lauro Jardim, em O Globo, trouxe um tema que merece reflexão: segundo a reportagem, um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) estaria articulando com governadores para lançarem candidaturas ao Senado, com o objetivo de impedir que um grupo político conquistasse maioria na Casa. Caso essa informação seja verdadeira, há uma grave distorção no equilíbrio entre os Poderes da República. Isso porque, como defende o professor Randy Barnett, a legitimidade de um governo está atrelada ao respeito a certos princípios fundamentais. Em seu artigo “The Declaration of Independence and the American Theory of Government”, Barnett explica que “primeiro vêm os direitos, depois vem o governo” (First come rights, and then comes government) (Barnett, 2019, p. 26).
Embora Barnett seja um teórico americano e seu pensamento esteja diretamente ligado à tradição constitucional dos Estados Unidos, suas ideias encontram eco no Brasil. Assim como os Estados Unidos, o Brasil também passou por um processo de independência no qual a ruptura com a metrópole foi necessária para afirmar a soberania nacional. Se, por um lado, a independência brasileira ocorreu por meio de uma transição política menos conflituosa, por outro, o desafio de construir instituições que garantissem a liberdade e a governança legítima foi igualmente crucial. A Declaração de Independência dos Estados Unidos não tem força normativa no Brasil, mas suas ideias, fundamentadas no princípio de que os direitos naturais precedem o governo, ressoam em qualquer país que se organize sob bases republicanas.
A mesma lógica se aplica ao fim do regime militar e à promulgação da Constituição de 1988. Se os direitos não existissem antes do Estado, como explicar a transição democrática? O próprio colapso do regime militar no Brasil se deu pelo reconhecimento de que os direitos fundamentais do povo não eram concessões estatais, mas realidades inalienáveis que precisavam ser restauradas. A nova Constituição não criou esses direitos – apenas os reconheceu formalmente. O que ocorreu em 1988 foi uma reafirmação de um princípio fundamental: o governo não concede direitos, ele deve protegê-los.
É justamente esse princípio que fundamenta a separação de poderes e limita a atuação estatal. Quando uma instituição como o STF ultrapassa os limites da sua função e busca influenciar diretamente a estrutura política do país, ela compromete essa base de legitimidade e subverte o próprio papel do Estado. O conceito de “Nós, o Povo” (We the People), que Barnett enfatiza, representa os indivíduos e seus direitos naturais, enquanto “Eles, o Governo” (They, the Government) são aqueles que exercem funções públicas dentro de regras claras e delimitadas. Esse equilíbrio exige que os representantes do Estado respeitem suas limitações constitucionais (Barnett, 2019, p. 27).
Se a escolha dos senadores deve ser feita pelo povo, qualquer tentativa de interferência por parte do Judiciário altera esse equilíbrio fundamental e coloca em risco a separação de poderes, minando um dos pilares da democracia.
O Senado tem um papel essencial na manutenção desse equilíbrio institucional, pois cabe a ele fiscalizar os outros poderes e, quando necessário, julgar processos de impeachment contra ministros do STF. Se um magistrado age para moldar a composição da Casa que pode julgá-lo, há um evidente conflito de interesses, minando a confiança da sociedade no princípio republicano da separação de poderes. O problema não está apenas no risco de favorecimento político, mas no fato de que um ator que deveria ser imparcial passa a atuar estrategicamente para definir as regras do jogo conforme sua conveniência. Isso representa uma inversão da lógica constitucional: o Judiciário deve ser o guardião da Constituição, não um participante ativo da arena política.
A separação de poderes é um dos pilares fundamentais da liberdade e da previsibilidade institucional. O sistema constitucional brasileiro foi estruturado para que cada Poder exerça suas funções sem interferências indevidas. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN – Lei Complementar 35/1979) reforça essa necessidade ao proibir expressamente que juízes exerçam atividades político-partidárias. Seu artigo 36, inciso III, é claro ao estabelecer que “é vedado ao magistrado dedicar-se à atividade político-partidária”. Essa vedação não é meramente formal; ela é uma salvaguarda essencial para garantir que o Judiciário permaneça um árbitro neutro e imparcial. Como Barnett argumenta, um governo legítimo não pode redefinir suas próprias limitações arbitrariamente, pois, caso contrário, a segurança jurídica se perde, e a autoridade do Estado diante dos cidadãos é comprometida (Barnett, 2019, p. 27).
Se o STF pode influenciar a composição do Senado, o que impediria que o Senado começasse a interferir nas decisões do STF? Esse tipo de interferência recíproca mina a independência das instituições e gera instabilidade. O respeito às funções constitucionais de cada Poder não é um detalhe técnico, mas um mecanismo fundamental para a preservação da liberdade e do Estado de Direito. Segundo Barnett, os direitos individuais não se originam no governo, mas preexistem à sua formação. O governo não tem a função de conceder direitos, e sim de assegurá-los, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição (Barnett, 2019, p. 25).
Essa concepção de governo limitado é essencial para qualquer democracia constitucional, incluindo a brasileira. Em nossa Constituição de 1988, o princípio fundamental da separação de poderes está consagrado no artigo 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A independência entre os poderes não é apenas uma formalidade jurídica, mas uma garantia essencial contra abusos. Quando um dos poderes expande sua influência sobre os outros, o resultado é sempre um enfraquecimento da representação popular e um afastamento do governo em relação aos seus verdadeiros princípios fundadores.
O artigo publicado hoje no Estadão, intitulado “Brasil – o desequilíbrio dos Poderes”, assinado pelos empresários Horacio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, reforça essa preocupação ao demonstrar que a redução do poder efetivo do Executivo prejudica tanto a democracia quanto a eficiência governamental. O texto aponta que o Poder Judiciário tem assumido cada vez mais espaços dos outros poderes, chegando ao ponto de determinar até mesmo como a Receita Federal deve atuar na cobrança de impostos. Ao lado disso, observa-se um Congresso que, em muitos casos, legisla apenas para atender interesses internos, enquanto decisões de impacto para a sociedade são delegadas a instâncias que não possuem a devida legitimidade democrática.
É especialmente relevante que esse alerta venha de empresários, pois mostra que o desequilíbrio entre os Poderes não é um problema abstrato ou restrito ao meio jurídico, mas uma questão que afeta diretamente o ambiente de negócios, a segurança jurídica e o desenvolvimento econômico do país. Quando as regras do jogo institucional são continuamente alteradas por interferências indevidas entre os Poderes, o investimento se torna mais arriscado, a previsibilidade das políticas públicas diminui e o crescimento econômico sofre as consequências. O fato de empresários de destaque estarem chamando a atenção para esse problema demonstra que a separação de poderes não é apenas um princípio teórico, mas um pilar essencial para a estabilidade do país e a prosperidade da sociedade.
O STF deve permanecer um tribunal de Justiça, e não um ator político que busca moldar o cenário eleitoral. A Lexum baseia sua visão na ideia de que o Estado existe para preservar a liberdade, a separação de poderes é essencial para a Constituição Federal e a função do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser. Quando essa barreira se rompe, o poder se concentra nas mãos de poucos, e a democracia se fragiliza. Se queremos preservar a liberdade e garantir um governo legítimo, devemos assegurar que o Legislativo legisle, o Executivo governe e o Judiciário julgue – sem ultrapassar suas atribuições. Esse é o verdadeiro significado de um governo limitado, constitucionalmente legítimo e verdadeiramente comprometido com a liberdade do povo.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/separacao-de-poderes-um-pilar-em-risco/
0 comments:
Postar um comentário