LEXUM
No recente evento do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, o ministro Luís Roberto Barroso fez uma defesa curiosa da liberdade de expressão. Segundo ele, a manifestação do pensamento deve ser garantida, mas “sem perder a civilidade”. A afirmação, noticiada pelo Consultor Jurídico (CONJUR), parece inofensiva e até sensata, mas levanta um problema central: quem define o que é civilidade? Quem traça essa linha entre um discurso legítimo e um suposto excesso? E, mais importante, a Constituição permite esse tipo de filtro?
A resposta curta: não, não permite.
A Constituição de 1988 estabelece a liberdade de expressão como um direito fundamental, ou seja, um limite intransponível ao poder do Estado. O artigo 5º afirma, sem rodeios, que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Para que não restem dúvidas, o artigo 220 reforça que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística. Isso significa que qualquer pessoa pode dizer o que quiser, sem precisar de autorização do governo, sem temer censura prévia, sem se preocupar com um comitê avaliador da “civilidade” do seu discurso. A única limitação real é a responsabilização posterior, caso a fala viole outros direitos previstos na Constituição, como a proteção à honra ou a vedação ao racismo e à incitação ao crime.
Essa lógica não é exclusividade de nosso país, nem algo fora do comum. Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda protege a liberdade de expressão com a mesma força que os dispositivos equivalentes na Constituição brasileira. Em ambos os países, ninguém pode ser silenciado de antemão. A liberdade de expressão é garantida de forma ampla, e eventuais abusos são tratados posteriormente, por meio de ações judiciais. Nos EUA, por exemplo, há os defamation suits, processos por difamação que exigem prova de que o autor do discurso agiu com dolo ou negligência grave. No famoso caso New York Times Co. v. Sullivan (1964), a Suprema Corte decidiu que figuras públicas só podem ser indenizadas por difamação se provarem que houve “real malícia”, ou seja, que a informação era sabidamente falsa ou foi divulgada com imprudente desconsideração pela verdade.
No Brasil, o modelo não é diferente: a liberdade de expressão é plena e irrestrita no momento da manifestação, mas, caso um abuso ocorra, há previsão constitucional para a responsabilização posterior. O que não se pode permitir é que o Judiciário, antecipadamente, imponha filtros subjetivos, como “civilidade”, para restringir a liberdade de expressão.
O erro conceitual aqui é confundir liberdade com licenciosidade. O Professor da Georgetown University, Randy Barnett, explica essa distinção de forma clara: liberdade é agir sem coerção arbitrária, dentro dos limites do Estado de Direito; licenciosidade é fazer qualquer coisa sem consideração pelos direitos alheios. O argumento de Barroso parece sugerir que, sem um critério prévio de civilidade, a liberdade de expressão se tornaria licenciosa, como se o sistema jurídico brasileiro fosse incapaz de lidar com abusos a posteriori. Mas essa separação entre liberdade e licenciosidade já existe no ordenamento jurídico, e a Constituição a trata da forma correta: garante a liberdade plena no momento da fala e permite sanções apenas quando um direito alheio for violado.
O que o Ministro Barroso parece propor – ainda que de forma sutil – não é a responsabilização posterior por abusos, mas um controle preventivo do discurso. E aqui chegamos ao ponto mais delicado: isso não é apenas inconstitucional, é antidemocrático.
A Constituição é clara ao estabelecer, no artigo 60, que os direitos e garantias individuais não podem ser abolidos nem mesmo por emenda constitucional. Ou seja, se nem uma reforma constitucional pode restringir a liberdade de expressão, com que fundamento o Judiciário poderia fazê-lo por meio de uma interpretação criativa? Não existe princípio constitucional que possa ser usado para suprimir ou relativizar um direito fundamental. O argumento de que a liberdade de expressão precisa ser limitada em nome da “democracia” ou da “harmonia social” simplesmente não se sustenta. Pelo contrário, permitir que um princípio abstrato como “civilidade” justifique restrições ao discurso é uma forma de negar a própria democracia, transformando o Judiciário em um poder acima da Constituição.
E isso nos leva à questão final: a liberdade de expressão no Brasil tem filtro ou não tem? Se se seguir o texto constitucional, a resposta é não, não tem. O que temos são regras claras para garantir que abusos sejam corrigidos posteriormente, sem impedir que o discurso aconteça. O que não podemos aceitar é a criação de barreiras subjetivas para definir quem pode falar e como deve falar.
Se permitirmos que conceitos fluidos como “civilidade” sejam usados para restringir a liberdade de expressão, abrimos um perigoso precedente: o de transformar um direito inalienável em uma mera permissão do Estado.
E isso, definitivamente, não é democracia.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.
*Artigo publicado originalmente no site da Lexum.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/liberdade-de-expressao-com-filtro-ou-sem-filtro/
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