Jornalista Andrade Junior

domingo, 23 de março de 2025

Quando os juízes extrapolam o seu poder

 LEXUM/INSTITUTOLIBERAL


Vivemos momentos de muita polarização política e ideológica, acirrada pelas facilidades dos meios de comunicação e redes sociais digitais. Nessas circunstâncias de caos social (principalmente às vésperas de alguma eleição ou manifestação política), ocorre, em qualquer país do mundo, uma tendência de os poderes políticos (responsáveis pela manutenção da “lei e ordem”) quererem ser mais vigorosos com o uso da força – física ou moral. É só lembrarmos de como surgiram todosos regimes autoritários nos séculos recentes da humanidade. Nessas horas, precisamos, mais do que nunca, agarrar-nos firmemente aos fundamentos da democracia – e não, do contrário, relaxá-los sob pretexto de “situação excepcional”.


Para além de sua importância no funcionamento normal das sociedades civilizadas modernas, essas questões têm todas fortes impactos econômicos. Por exemplo, a tripartição equilibrada dos poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — é essencial não apenas para a democracia nesses momentos de instabilidade e crise, mas também para a manutenção do funcionamento econômico de uma nação. Quando um dos poderes, por exemplo, o Judiciário, ultrapassa seus limites e assume funções que não lhe cabem, como literalmente a de legislar em decisões que ultrapassam seu limite de atuação, ou quando ocorre a imposição de visões pessoais, os custos para a sociedade são enormes. Sob a ótica econômica, o ativismo judicial gera incerteza jurídica, aumenta os custos de transação e desincentiva investimentos, prejudicando fortemente o desenvolvimento econômico e social (assunto sobre o qual já discorremos anteriormente na coluna “O preço da incerteza”, de 13 de dezembro do ano passado).


O Judiciário, por definição, deve ser um intérprete da lei, não um criador dela (salvo raras exceções quando é explicitamente invocado para tal função). A base deve ser o texto da lei e, no caso da Constituição, o sentido público das palavras na época da promulgação. Quando juízes passam a legislar a partir do bench, eles violam não apenas o princípio da separação dos poderes, mas também introduzem uma instabilidade normativa que afeta diretamente a economia. Empresas e indivíduos dependem de um marco legal previsível para tomar decisões racionais. Decisões judiciais ativistas, que frequentemente mudam as regras do jogo de forma inesperada, criam um ambiente de insegurança que desencoraja investimentos e inovações, gerando custos sociais significativos.


Do ponto de vista do consequencialismo, é crucial avaliar os impactos práticos do ativismo judicial. Magistrados que se veem como “guardiões da moral” ou “defensores de causas nobres” muitas vezes ignoram os efeitos colaterais de suas decisões. Por exemplo, ao impor regras ou interpretações que não passaram pelo crivo do Legislativo, juízes podem criar distorções na sociedade, gerar litígios desnecessários e sobrecarregar o sistema judiciário, aumentando os custos para toda a sociedade – e um Judiciário sobrecarregado não deveria ser orgulho para nenhum cidadão, muito menos para os próprios magistrados. A falta de accountability no Judiciário agrava o problema de um autoengano de seus membros, ao considerarem-se acima do que é aceitável como bem ou mal, pois suas decisões equivocadas ou ideologicamente motivadas raramente são corrigidas ou responsabilizadas.


A tendência de magistrados se considerarem intelectualmente e moralmente superiores ao restante da sociedade também tem implicações econômicas. Quando juízes assumem o papel de “filósofos-reis”, decidindo o que é “certo” ou “errado” para todos, eles frequentemente ignoram as complexidades e trade-offs inerentes às políticas públicas. Decisões judiciais que, por exemplo, impõem gastos obrigatórios ao Estado sem considerar a sustentabilidade fiscal podem levar a desequilíbrios orçamentários, inflação e até crises econômicas. Sem contar com os chamados “efeitos bumerangue” que ocorrem diariamente nos tribunais (também já longamente discutidos nesse espaço). A ausência de um debate democrático amplo, como ocorre no Legislativo, faz com que as decisões judiciais sejam tomadas – via de regra – sem a devida ponderação dos custos e benefícios para a sociedade.


A psicologia humana, aliada à falta de mecanismos efetivos de prestação de contas, torna o Judiciário particularmente vulnerável ao abuso de poder. Magistrados, como todos os seres humanos, estão sujeitos a vaidades, vieses cognitivos e à sedução pelo poder. Quando não há freios ou contrapesos, o risco de decisões arbitrárias ou ideologicamente motivadas aumenta exponencialmente. Sob uma perspectiva econômica, isso representa um custo oculto para a sociedade: a erosão da confiança nas instituições, o aumento da litigiosidade e a perda de eficiência no sistema jurídico. Sob uma perspectiva social, isso representa um perigoso risco de um “autoritarismo de toga” chancelado por supostos argumentos a favor do interesse comum.


Para evitar esses custos, é essencial fortalecer os mecanismos de controle e transparência no Judiciário. A introdução de métricas de desempenho, a revisão periódica de decisões e a criação de canais de accountability podem ajudar a mitigar os riscos do ativismo judicial. Além disso, a sociedade deve estar atenta aos limites do poder judiciário, reconhecendo que juízes são intérpretes da lei, não legisladores, governantes ou controladores últimos do destino de cada pessoa e cada organização na sociedade. A democracia e a economia prosperam quando os poderes atuam em harmonia, cada um cumprindo seu papel específico sem ultrapassar os limites que lhes foram conferidos.


O ativismo judicial não é apenas uma questão jurídica ou política; é também um problema econômico. Ao ignorar os princípios da separação dos poderes e da responsabilidade institucional, juízes que se aventuram no ativismo judicial colocam em risco não apenas a democracia, mas também a eficiência e a estabilidade econômica. A sociedade deve estar vigilante, pois o “autoritarismo de toga” é uma ameaça silenciosa, mas profundamente perigosa ao Estado de Direito e ao bem-estar coletivo. Ela não vem de “supetão”, como um grupo reacionário em uma revolução, mas se instaura gradualmente, muitas vezes fantasiada com as mais nobres intenções e justificativas humanitárias.


(Agradeço muito ao Leonardo Corrêa, fundador e presidente do Lexum, pelos inputs e feedbacks recebidos na redação deste artigo. Erros e inadequações são inteiramente de responsabilidade desta colunista.)


*Luciana Yeung – Professora Associada I e Coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE), uma das fundadoras da Lexum. Pesquisadora-visitante no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora de “O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica”, “Introdução à Análise Econômica do Direito” (juntamente com Bradson Camelo) e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de outras publicações, todos na área do Direito & Economia.


*Artigo publicado originalmente no site da Lexum. 















PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/quando-os-juizes-extrapolam-o-seu-poder/

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