Por Daniel Jelin, na VEJA.com:
Um dos argumentos de quem defende o decreto bolivariano de Dilma Rousseff – o de número 8.243, que estimula todos os órgãos da administração federal a abrigar conselhos de “representantes da sociedade civil” – é que o Brasil já conta com milhares de entidades desse tipo, em todas as camadas de governo. É verdade. Mas a experiência acumulada nesses fóruns não é nada animadora: eles têm muito pouco de “democrático” e um conceito bem particular do que seja “sociedade civil”.
Um dos argumentos de quem defende o decreto bolivariano de Dilma Rousseff – o de número 8.243, que estimula todos os órgãos da administração federal a abrigar conselhos de “representantes da sociedade civil” – é que o Brasil já conta com milhares de entidades desse tipo, em todas as camadas de governo. É verdade. Mas a experiência acumulada nesses fóruns não é nada animadora: eles têm muito pouco de “democrático” e um conceito bem particular do que seja “sociedade civil”.
O decreto
foi assinado por Dilma há um mês. A pretensão de que uma “política
nacional de participação social” pudesse ser implementada pelo Executivo
numa canetada causou forte reação no Congresso. Oposição e base aliada
ameaçaram barrar o decreto, mas o governo promete resistir. Gilberto
Carvalho, secretário-geral da Presidência e czar dos movimentos sociais
no Planalto, alega questões de princípio (o desejo de “fortalecer e
articular os mecanismos e as instâncias democráticas”), mas, num ano
eleitoral, é evidente o propósito de cooptar ou recooptar sindicatos,
ONGs e outras organizações sociais para o projeto petista.
Febre dos conselhos
A multiplicação dos conselhos é um fenômeno induzido pela Constituição de 1988, numa aparente tentativa de reparar o déficit democrático de um país recém saído da ditadura. De 1930 a 1989, segundo o Ipea, foram criados apenas cinco conselhos federais no Brasil. Nos 20 anos seguintes, surgiram mais 26. Atualmente, são 40 – incluindo as comissões. Por exigência legal ou simplesmente inspirados nos colegiados federais, Estados e municípios também foram tomados por essa “febre conselhista”. Segundo o IBGE, 5553 cidades têm conselhos de saúde, 3784 do meio ambiente e 976 da mulher (dados de 2013); 1231 de política urbana, 5527 de assistência social, 1507 de segurança alimentar, 357 do transporte, 1798 da cultura e 642 da segurança pública (dados de 2012); 4718 da educação, 3240 da habitação e 195 do saneamento (dados de 2011).
A multiplicação dos conselhos é um fenômeno induzido pela Constituição de 1988, numa aparente tentativa de reparar o déficit democrático de um país recém saído da ditadura. De 1930 a 1989, segundo o Ipea, foram criados apenas cinco conselhos federais no Brasil. Nos 20 anos seguintes, surgiram mais 26. Atualmente, são 40 – incluindo as comissões. Por exigência legal ou simplesmente inspirados nos colegiados federais, Estados e municípios também foram tomados por essa “febre conselhista”. Segundo o IBGE, 5553 cidades têm conselhos de saúde, 3784 do meio ambiente e 976 da mulher (dados de 2013); 1231 de política urbana, 5527 de assistência social, 1507 de segurança alimentar, 357 do transporte, 1798 da cultura e 642 da segurança pública (dados de 2012); 4718 da educação, 3240 da habitação e 195 do saneamento (dados de 2011).
O formato
mais comum de conselho não chega a ser uma jabuticaba, mas é bastante
peculiar. O governo dá forma ao conselho, define suas funções e indica
aproximadamente metade dos conselheiros. A escolha dos demais
representantes é prerrogativa de ONGs, sindicatos e associações
variadas, muitas delas direta ou indiretamente cacifadas pelo governo. É
discutível quem representa o que nesses órgãos, mas é fato que o
cidadão comum não tem palavra: não vota, nem pode ser votado. A
participação, portanto, é indireta.
No papel
Os poderes de cada conselho variam bastante, de acordo com a força das entidades que atuam no setor e a disposição do governo em atendê-las. Os menos institucionalizados mal saem do papel. Segundo levantamentos do IBGE, a taxa de conselhos municipais que não tiveram uma única reunião nos 12 meses anteriores à pesquisa é de: 30% para segurança pública, 29% para transportes, 28% para política urbana e para direitos da mulher, 27% para habitação e segurança alimentar e 25% para cultura.
Os poderes de cada conselho variam bastante, de acordo com a força das entidades que atuam no setor e a disposição do governo em atendê-las. Os menos institucionalizados mal saem do papel. Segundo levantamentos do IBGE, a taxa de conselhos municipais que não tiveram uma única reunião nos 12 meses anteriores à pesquisa é de: 30% para segurança pública, 29% para transportes, 28% para política urbana e para direitos da mulher, 27% para habitação e segurança alimentar e 25% para cultura.
Já os
conselhos mais institucionalizados podem ser bastante influentes. É o
caso do Conselho Nacional do Meio Ambiente, um dos colegiados mais
enraizados na máquina federal. É certo que o Conama não legisla, mas o
que se delibera por lá tem ampla repercussão – e eventualmente força de
lei. O Conama é notório pelo grande número de conselheiros: 108. São
mais cadeiras do que o Senado (81) ou a Assembleia Legislativa de São
Paulo (94). É um verdadeiro congresso, de fato, com “bancadas”,
“frentes” e “oposição”. Não espanta que a maioria dos conselheiros (54%)
aponte como principal entrave as “questões políticas alheias à agenda
do Conselho”, segundo sondagem do Ipea de 2010. Uma evidência das
facções do conselho: na mesma pesquisa, três resoluções são
simultaneamente citadas por conselheiros como as mais positivas e as
mais negativas do Conama.
Currículo e representatividade
Há gente séria no Conama, indicada por entidades idem. O problema não é exatamente currículo, mas representatividade. Os estados têm todos o mesmo peso, uma única vaga. Regiões também, cada qual com duas cadeiras para os ambientalistas e uma para representar as prefeituras. Cada ministério, cada secretaria e cada uma das Forças Armadas têm uma vaga garantida. Ibama, centrais sindicais, Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental e Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) também. Empresas têm oito lugares. Tudo somado, o governo tem folgada maioria (72% das vagas).
Há gente séria no Conama, indicada por entidades idem. O problema não é exatamente currículo, mas representatividade. Os estados têm todos o mesmo peso, uma única vaga. Regiões também, cada qual com duas cadeiras para os ambientalistas e uma para representar as prefeituras. Cada ministério, cada secretaria e cada uma das Forças Armadas têm uma vaga garantida. Ibama, centrais sindicais, Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental e Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) também. Empresas têm oito lugares. Tudo somado, o governo tem folgada maioria (72% das vagas).
Em
entrevistas ao Ipea, a grande maioria dos conselheiros do Conama se gaba
de contribuir para a melhoria da gestão ambiental e de manter constante
contato com o segmento que diz representar. No dia a dia, a história é
outra. Dos 108 representantes titulares, só 10 compareceram às três
reuniões plenárias de 2014. Na última, uma convocação extraordinária
para concluir o encontro anterior encerrado por falta de quórum, havia
apenas 26 titulares. E, embora haja dois suplentes para cada titular, 38
cadeiras ficaram vazias. Por faltar repetidamente, três representantes
perderam temporariamente o direito a voto. “É decepcionante demais”,
conta um dos poucos conselheiros assíduos, para quem o órgão atravessa
uma crise de legitimidade. “O Conama parou.”
“Voando”
Os assuntos do Conama nem sempre são fáceis de acompanhar. Um dos temas que mais ocuparam o conselho, e cujas indefinições ajudam a explicar o esvaziamento das plenárias, são os desdobramentos da lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010, e do decreto que a regulamentou (criando, de quebra, mais dois comitês…). Um dos titulares com seguidas faltas no Conama reconhece não entender o que “o pessoal das ONGs” discute por lá. “Eu passo o dia ‘voando’”, admite.
Os assuntos do Conama nem sempre são fáceis de acompanhar. Um dos temas que mais ocuparam o conselho, e cujas indefinições ajudam a explicar o esvaziamento das plenárias, são os desdobramentos da lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010, e do decreto que a regulamentou (criando, de quebra, mais dois comitês…). Um dos titulares com seguidas faltas no Conama reconhece não entender o que “o pessoal das ONGs” discute por lá. “Eu passo o dia ‘voando’”, admite.
Não é só
no Conama que os conselheiros passam o dia “voando”. Segundo pesquisa do
Ipea de 2013 com mais de 700 conselheiros da administração federal, a
maioria deles (61,5%) está convicta de que os temas abordados são
compreendidos apenas parcialmente pelo colegiado, e 6,7% acham que os
assuntos simplesmente não são assimilados. Nos órgãos que lidam com
questões de infraestrutura e recursos naturais, apenas 18,9% afirmam que
os assuntos discutidos são plenamente entendidos no conselho.
Dominado
A “governança da internet”, da qual o governo federal subitamente descobriu se orgulhar, é um exemplo de como os mecanismos de participação social podem ser distorcidos. Criado em 1995, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) é o órgão encarregado de formular diretrizes para a tal governança. Foi de lá que saíram as linhas gerais do Marco Civil da Internet – bem traçadas, diga-se. Desde 2003, o CGI.br segue aproximadamente o desenho previsto no decreto de Dilma: sociedade civil e governo encontram ali representações “paritárias” – na verdade a sociedade civil tem um peso pouquinho maior, 11 a 9 cadeiras. Tanto os atos da secretaria como a escolha de seus membros passam por processos “públicos” e “transparentes”, uma vez que ganham divulgação no próprio site do CGI.br.
A “governança da internet”, da qual o governo federal subitamente descobriu se orgulhar, é um exemplo de como os mecanismos de participação social podem ser distorcidos. Criado em 1995, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) é o órgão encarregado de formular diretrizes para a tal governança. Foi de lá que saíram as linhas gerais do Marco Civil da Internet – bem traçadas, diga-se. Desde 2003, o CGI.br segue aproximadamente o desenho previsto no decreto de Dilma: sociedade civil e governo encontram ali representações “paritárias” – na verdade a sociedade civil tem um peso pouquinho maior, 11 a 9 cadeiras. Tanto os atos da secretaria como a escolha de seus membros passam por processos “públicos” e “transparentes”, uma vez que ganham divulgação no próprio site do CGI.br.
A eleição
do CGI.br tem a fórmula da maioria dos conselhos: só as entidades
pré-cadastradas participam. Segundo as regras do comitê, essas
associações devem ter CNPJ e dois anos de atividade – em comparação, o
decreto 8.243 é bem mais temerário, prevendo a participação de
“coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não
institucionalizados, suas redes e suas organizações”, o que seria
absolutamente impossível de fiscalizar.
A última
eleição, em fins de 2013, demonstrou a fragilidade desse modelo. Para
surpresa e mal estar do comitê, o colégio eleitoral foi subitamente
dominado por cooperativas de pequenos agricultores, associações
comunitárias e assentamentos da Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande
do Norte com pouca ou nenhuma ligação com os temas do comitê. De 234
entidades inscritas, pelo menos 130 provinham dos grotões. O candidato
mais votado por esta sociedade civil preside uma ONG de inclusão digital
em João Pessoa (PB), não enxerga manipulação no processo eleitoral e
diz que os concorrentes fazem o mesmo: “fui mais eficiente”. Com algum
idealismo, pode-se torcer para que a próxima eleição seja mais
disputada, diluindo esse tipo de distorção. O risco mais palpável,
contudo, é o de afastar do comitê os representantes, digamos, menos
atirados.
Panaceia
As limitações dos conselhos não significam, é claro, que não haja inteligência na chamada “sociedade civil organizada” ou que a única forma de participação democrática seja o processo eleitoral. Mas sua adoção não pode ser deslumbrada – ou ardilosa, como o decreto 8.243. O cientista social Rafael Cortez, da consultoria Tendências, lembra que “participação social” não é panaceia para aumentar a eficiência das políticas públicas – uma medida decidida por muitos “participantes” nem sempre é sábia.
As limitações dos conselhos não significam, é claro, que não haja inteligência na chamada “sociedade civil organizada” ou que a única forma de participação democrática seja o processo eleitoral. Mas sua adoção não pode ser deslumbrada – ou ardilosa, como o decreto 8.243. O cientista social Rafael Cortez, da consultoria Tendências, lembra que “participação social” não é panaceia para aumentar a eficiência das políticas públicas – uma medida decidida por muitos “participantes” nem sempre é sábia.
Uma função
que esses colegiados poderiam desempenhar com alguma eficácia é a de
servir como uma espécie de câmara de eco das políticas públicas. Com
isso, os gestores não precisam esperar as eleições para sondar as
expectativas dos diversos setores da sociedade e conhecer a repercussão
de uma iniciativa. A maioria dos conselhos no Brasil, contudo, vai muito
além: eles efetivamente têm poder de decisão, o que exige desenhos
institucionais muito mais cautelosos. Para tanto, Cortez alerta, os
colegiados devem primar pela prestação de contas, para que o restante da
sociedade possa monitorar as decisões tomadas, e pela total
independência entre as partes, para impedir a cooptação das entidades.
Mais controle
É verdade, como disse o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, que o decreto não cria conselhos. Mas é um incentivo e tanto. O texto manda que todo órgão e entidade da administração federal, direta e indireta, “considere” sua adoção – ou a de outra instância prevista no texto (comissões, conferências, “mesas” etc). Seja qual for o resultado desta “consideração”, o texto prevê relatórios anuais sobre a implementação desta “política nacional de participação social”.
É verdade, como disse o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, que o decreto não cria conselhos. Mas é um incentivo e tanto. O texto manda que todo órgão e entidade da administração federal, direta e indireta, “considere” sua adoção – ou a de outra instância prevista no texto (comissões, conferências, “mesas” etc). Seja qual for o resultado desta “consideração”, o texto prevê relatórios anuais sobre a implementação desta “política nacional de participação social”.
E quem
“aconselha” os “conselheiros”? A resposta, pelo que se entende do
decreto, é: o próprio Gilberto Carvalho. Cabem à sua secretaria
“orientações”, “coordenações” e “avaliações” do programa, por meio dos
palavrosos Sistema Nacional de Participação Social, Comitê Governamental
de Participação Social e Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais,
todos de franca inspiração bolivariana. O que se pode esperar desse
sistema é mais “controle social”, diretriz fixada no decreto e pretensão
declarada de um a cada quatro conselheiros da administração federal. O
que se entende por “controle social” não é consenso entre acadêmicos.
Mas já se sabe o que o PT pensa disso, a julgar por sua cruzada para
patrulhar a imprensa por meio de certo “controle social da mídia”.
Pretexto
Essa multiplicação de conselhos populares por decreto pode satisfazer as panelinhas do terceiro setor, incrustando de ONGs a máquina pública; pode atender às conveniências do Planalto, amansando os movimentos sociais em ano de eleição; pode corresponder aos devaneios dos “conselhistas”, para quem os colegiados são um fim em si mesmo; pode até, é claro, resultar em um ou outro conselho funcional. Mas nada disso tem a ver com “aprofundar a democracia” – que é, como se sabe, o pretexto dos autoritários para subverter o regime.
Essa multiplicação de conselhos populares por decreto pode satisfazer as panelinhas do terceiro setor, incrustando de ONGs a máquina pública; pode atender às conveniências do Planalto, amansando os movimentos sociais em ano de eleição; pode corresponder aos devaneios dos “conselhistas”, para quem os colegiados são um fim em si mesmo; pode até, é claro, resultar em um ou outro conselho funcional. Mas nada disso tem a ver com “aprofundar a democracia” – que é, como se sabe, o pretexto dos autoritários para subverter o regime.
FONTE REINALDO AZEVEDO
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