Depois da tomada do poder pelas forças armadas, a imensa maioria da população acomodou-se e até aplaudiu
Hoje, 50 anos depois, prevalece a falsa impressão de que a partir do 31
de março de 1964 o Brasil insurgiu-se por inteiro contra o golpe
militar. Agora, todo mundo diz ter sido da resistência, todo mundo
lutou contra a ditadura, todos arriscaram suas vidas, todos querem tirar
satisfações, algumas delas mais do que justas, outras nem tanto, ainda
que todas perdidas no rodamoinho da História. ...
Não foi nada disso. Depois da tomada do poder pelas forças armadas, a
imensa maioria da população acomodou-se e até aplaudiu.O país
continuou vivendo, cada um preocupado com seus problemas, até que com o
passar dos anos e os excessos praticados pelo regime, bem como seu
esgotamento, a tendência nacional posicionou-se contra.
Claro que nos meses anteriores ao 31 de março de 1964 os ânimos estavam
exaltados, dividido o país em dois grupos minoritários, mas em
crescimento.
De um lado as esquerdas que imaginavam mudar tudo através de reformas
capazes de extinguir as desigualdades sociais, econômicas e políticas,
senão adotando as teorias marxistas como um roteiro de ação, ao menos
aproximando-se de um modelo socialista. É claro que também havia nesse
grupo heterogêneo os partidários da ditadura do proletariado, aqueles
que sustentavam a ruptura das instituições vigentes e a adoção de um
violento sistema de governo, supressor das liberdades.
Do outro lado, situava-se um grupo de empedernidos defensores de seus
privilégios sociais, econômicos e políticos, infensos a quaisquer
mudanças, aqueles que sem coragem de opor-se frontalmente às reformas,
levantavam a bandeira do combate ao comunismo, aliás sem o menor lugar
na realidade nacional. Queriam mesmo preservar suas benesses e suas
conquistas.
Tudo era absorvível pela maioria que igualmente desprezava os
dois extremos, até a hora em que os ânimos se acirraram,
possivelmente um com medo do outro, ou ambos buscando aproveitar-se do
adversário.
O presidente João Goulart havia chegado ao poder em 1961 depois de um
ensaio geral do conflito futuro. Era herdeiro de Getúlio Vargas,
promotor das maiores reformas sociais e econômicas verificadas em
nossa História, com os direitos trabalhistas e a industrialização, ainda
que por muitos anos tivesse sido patrono do retrocesso político, com o
Estado Novo, ditadura declarada. Jango entendia dever avançar na
esteira de Vargas, que retornara ao governo democraticamente, promovendo
as alterações compatíveis com os tempos que avançavam. Como Getulio,
acabou sufocado pelos que o acusavam de comunista e de outra vez
candidato a ditador. A ênfase para aquela distorção era dada pelo
empresariado, parte das forças armadas, mais da metade do Congresso e
a totalidade da Igreja. De outro lado posicionavam-se intelectuais
um tanto afoitos partidários da transformação radical da sociedade,
mais sindicalistas e camponeses desesperados, presas fáceis de
exploradores. Apesar de conciliador, maior proprietário de terras do
país, o presidente ficou com as reformas, cada vez mais agressivas e
por isso mesmo despertando seus contrários. Tentou fazê-las todas de uma
vez, e aí quebrou a cara.
Impossível não referir o papel das elites conservadoras, muito melhor
organizadas. Elas atuavam junto à maioria situada entre os dois
extremos, cooptando-a através de ameaças contra sua precária
estabilidade. Mobilizavam a maioria da imprensa, cujos barões delas
faziam parte, assim como assustavam os militares, em plena guerra fria
ligados aos Estados Unidos, e a Igreja, temerosa de perseguições
verificadas no Leste Europeu,na União Soviética e na China.
Armava-se o palco para um confronto que apenas ilusória e
retoricamente indicava o equilíbrio de forças. Os favoráveis às reformas
faziam espuma e fumaça, mas na realidade não dispunham de mecanismos
para impor o seu modelo. Como sempre, as classes trabalhadoras
permaneciam à margem, carecendo de vontade e de meios para fazer valer
suas tendências, se é que elas existiam e tendiam para o enfrentamento
dos conservadores.
Inoculada pela propaganda dos que lutavam contra as reformas, bem como
receosa de mudanças capazes de afetar-lhe as poucas conquistas
amealhadas através das décadas, a classe média não se insurgiu contra o
golpe militar. Até o apoiou, em seus primeiros meses e anos.
Por isso se ousa contradizer o sentimento que hoje grassa na maior
parte dos jovens que agora se ufanam de haver lutado contra a ditadura,
metade deles que nem havia nascido em 1964: não foi nada disso! A
sociedade acomodou-se, pouco lamentou a queda de João Goulart e bateu
palmas para o general Castello Branco, como depois para o general
Garrastazu Médici. Só aos poucos, com a truculência do regime
militar, a perpetuação do arbítrio, a tortura e a censura, bem como
a sucessão de alterações nas regras do jogo depois dele começado, é
que se fez sentir o repúdio nacional diante do regime.
Em suma, repito o que durante 25 anos disse a meus alunos na
Universidade de Brasília: o mundo não está dividido entre mocinhos e
bandidos, mesmo que muitos sejam mais bandidos do que mocinhos.
Apesar de tudo, o Brasil continua. Os militares cometeram erros
grotescos. Execráveis. Mas também contribuíram para esse verdadeiro
milagre da Historia que é a preservação da unidade nacional. Eles e
quantos existiram antes e quantos vieram e virão depois.
Fonte: CARLOS CHAGAS portal Diário do Poder -
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