· DEMÉTRIO MAGNOLI
o O GLOBO
· Benito Mussolini comandou a Marcha
sobre Roma, em 1922, para assestar o golpe final no frágil governo conservador
italiano. A marcha fascista reuniu menos de 30 mil militantes, mas triunfou:
sob o temor da guerra civil, e estimulado pela crença de que Mussolini salvaria
a Itália dos sindicatos vermelhos, o rei Vittorio Emanuele III entregou ao Duce
a chefia do governo. Hoje, o PT anuncia uma Marcha sobre Brasília para impor a
sua versão de uma reforma política. O projeto tem o aval de Dilma Rousseff,
expresso na declaração presidencial de que “é preciso uma conjuntura que
envolva as ruas para pressionar o Congresso a fazer a reforma política”. A história
se repete, obviamente como farsa. A farsa, contudo, esclarece muita coisa.
Um embrião do projeto veio à luz num
artigo assinado pelo governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, no fim de
janeiro. Intitulado “Uma perspectiva de esquerda para o Quinto Lugar”, o texto
elucubrava sobre as virtudes do modelo econômico chinês para, na conclusão,
preconizar a convocação de “uma nova Assembleia Nacional Constituinte no bojo
de um amplo movimento político inspirado pelas jornadas de junho”, mas “com
partidos à frente”. Não era uma proposta de médio prazo, mas um chamamento à
ação: “Penso que as esquerdas no país devem abordar programaticamente estas
novas exigências para o futuro, já neste processo eleitoral”, escreveu Genro.
As palavras de Genro têm um sentido.
Assembleia Constituinte é, por definição, o órgão que, concentrando a soberania
popular, introduz um novo regime. Historicamente, ela nasce da falência do
Estado — ou seja, do desabamento do “antigo regime”. Quando, porém, é o próprio
governo que, em plena democracia, conclama o povo a exigir a mudança de regime,
estamos diante de uma tentativa de concentração de poder cujo alvo são as
liberdades públicas e os direitos políticos da oposição. Por sorte, Genro não
fala em nome do governo (e, aliás, esse é o motivo pelo qual ele se dá ao
desfrute de publicar desvarios autoritários dessa espécie).
O projeto petista de reforma não toca
no alicerce do sistema de poder, que sustenta o atual sistema
político-partidário: a colonização do Estado pelos partidos políticos
A mobilização anunciada pelo PT segue
rota um tanto distinta. O partido prepara a coleta de 1,5 milhão de assinaturas
para respaldar um projeto de lei de iniciativa popular articulado em torno das
propostas de financiamento público de campanha eleitoral e voto em listas
partidárias fechadas. No projeto petista, a “Assembleia Nacional Constituinte”
cede lugar à curiosa ideia de uma “Constituinte exclusiva” destinada a legislar
unicamente sobre a reforma política. A conclamação de Genro tinha uma certa coerência
política: Assembleia Constituinte é, sempre e inevitavelmente, um órgão
soberano, pois reúne os representantes eleitos pelo povo para produzir uma
Constituição. A versão branda da Marcha sobre Brasília, por outro lado,
equivale a inventar uma roda quadrada: uma Constituinte amputada de soberania,
circunscrita a uma esfera de decisões desenhada pelo Executivo e pelo
Congresso. É farsa — e um tanto ridícula.
A farsa, porém, tem a sua própria
lógica. Por que, no 12º ano de poder, o lulopetismo proclama a urgência de uma
ampla reforma política? A primeira resposta encontra-se no calendário
eleitoral. Os estrategistas da reeleição de Dilma pretendem, por meio da Marcha
sobre Brasília, colorir a campanha com as cores de um “mudancismo” ilusório,
conectando-se de alguma forma com a vontade de mudança expressa nas jornadas de
junho e registrada nas sondagens eleitorais. O sucesso do truque depende das
reações — ou da ausência delas — dos candidatos oposicionistas.
A primeira resposta, entretanto, não
perfura a película da questão. Segundo depoimento de uma militante, Dilma
explicou a interlocutores de “movimentos sociais” que a reforma política “não é
só uma questão de caneta”, pois “a maioria que ela tem no Congresso não é uma
maioria em todos os temas”. As palavras da presidente têm um sentido. O
lulopetismo almeja, efetivamente, um tipo singular de reforma política: a
criação das regras mais propícias à cristalização de seu poder. A Marcha sobre
Brasília é o instrumento escolhido para atemorizar os parceiros da santa
aliança governista, dobrando-os à vontade do PT.
Os dois eixos da proposta petista de
reforma política têm objetivos distintos. O financiamento público de campanha,
que não exclui o recurso subterrâneo ao caixa 2, destina-se a libertar
completamente os partidos da necessidade de arrecadar dinheiro junto à sua base
eleitoral. Somado à manutenção do Fundo Partidário e do horário “gratuito” nos
meios eletrônicos de comunicação, ele cristaliza a constelação de “partidos
estatais” (que abrange os partidos de aluguel), funcionando como um escudo
defensivo do conjunto da elite política. É, sobretudo, uma contrarreforma.
Já o voto em listas partidárias
fechadas destina-se a reforçar o controle das direções partidárias sobre os
representantes eleitos e, também, a ampliar o potencial eleitoral da sigla
partidária com maior reconhecimento, que é o próprio PT. O principal
prejudicado seria o PMDB, um partido-ônibus, heterogêneo e descentralizado, que
congrega máquinas políticas estaduais. No cenário dos sonhos do PT, o parceiro
privilegiado da coalizão de poder seria reduzido a um partido de porte médio,
condenado a orbitar inerme, ao lado de outros, em torno da estrela vermelha.
Elucidativamente, o projeto petista de
reforma não toca no alicerce do sistema de poder, que sustenta o atual sistema
político-partidário: a colonização do Estado pelos partidos políticos. A
oportunidade de conquistar frações valiosas do poder público — aparelhos
ministeriais, empresas estatais, agências regulatórias — constitui o motor do
sistema político brasileiro e, também, a fonte primária da corrupção estrutural
no país. A Marcha sobre Brasília passará ao largo desse tema, que ocupa o lugar
de um tabu no discurso falsamente reformista do PT.
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