A menina quis saber se era por causa do Natal. Não, o Natal estava longe. Os dois saíram correndo, aos pulos
Crônicas de Natal, se repassadas dos jornais brasileiros para livros, comporiam toda uma biblioteca. Não custa reforçar, por isso, a diferença entre qualidade e quantidade. Como não contribuí para a primeira, deixei de engrossar a segunda. Mas, na verdade, menos por esse motivo --ou teria de estendê-lo aos artigos que socorrem o orçamento familiar-- do que por precaução.
A última crônica natalina que escrevi era, claro, para o Natal. Mas não foi. Contava o caso real de duas crianças que dividiam o tempo, na calçada perto da sucursal carioca da Folha, entre chutar alguma coisa à maneira de bola e pedir uns trocadinhos sempre raros e ralos. Mas não descalças, como é comum. Calçavam o que tinha sido um par de tênis. O menininho com um pé, a irmã, pouco maior, com o outro. Levados a uma sapataria, para cada um escolher o seu par de tênis, a menina quis saber se era por causa do Natal. Não, o Natal estava longe. Os dois saíram correndo, aos pulos.
Depois de alguma divagação, sobre o peso que os anos de lembranças dão a esta época, o ponto final natalino: "As crianças e seus presentes, os adultos e seus ausentes". Algumas pessoas, entre elas meu amigo Pasquale Cipro Neto com um telefonema especial, me falaram da crônica. Parece que mais pela frase final. Soube que professores também usaram o texto em vestibulares. Mas nenhum deles o leu no Natal. A crônica não foi publicada.
Os da minha geração no jornalismo têm motivos para indagar-se logo, em situações assim, o que haveria de tão inaceitável no texto a ponto de vetá-lo. Não precisei perguntar. "Esquecemos da sua coluna, mas publicamos amanhã". Havia só mais de 20 anos que a coluna saía seis vezes por semana. A imprensa ainda não era tão requentada, ainda assim achei que a ocasião havia passado. Diante da insistência, pedi que se pusesse, ao final da crônica, um fio de separação e a frase informando que o texto não saíra na véspera por "falha técnica".
Foi assim que a crônica cresceu com mais uma frase, um novo fecho. O aviso foi posto, mas o traço de separação foi esquecido. Por precaução, nunca mais escrevi para o Natal.
A ideia daquela crônica me deu vontade de procurar as duas crianças, tão miseráveis, sujinhas de rua e de abandono, e tão suavemente simpáticas, como tantas crianças miseráveis, sujinhas de rua e de abandono, e tão suavemente simpáticas, neste país tão cheio de riquezas prepotentes e avaras. Irmão e irmã estariam precisando de tênis maiores. E agora poderiam ouvir que, sim, eram presentes de Natal.
Voltei às redondezas da antiga sucursal. Crianças da pobreza costumavam vender os seus chicletes e pastilhas em pontos constantes, como suas lojas ao ar livre, até que as autoridades competentes as reprimiram. Bati as ruas e quadras por lá. Nada. Ou já não pude reconhecer os dois. Hoje me lembrei outra vez daquela pergunta: "É por causa do Natal?" E percebi que o peso dado às minhas lembranças, por esta época, tem duas ausências a mais e diferentes das outras.
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