Em 2014, o Brasil do futebol mais vitorioso e festejado do mundo terá encontro marcado com o Brasil que é pereba na infraestrutura, perna de pau na educação, consistente na desigualdade social e matador na corrupção. Nenhum dos dois é uma mentira, mas, naturalmente, estranham-se no espelho. ...
Em 2014, o Brasil do futebol mais vitorioso e festejado do mundo terá
encontro marcado com o Brasil que é pereba na infraestrutura, perna de
pau na educação, consistente na desigualdade social e matador na
corrupção. Nenhum dos dois é uma mentira, mas, naturalmente,
estranham-se no espelho.
A Copa do Mundo que se disputará de 12 de junho a 13 de julho do ano
que começa será a mais difícil da história para o Brasil. A previsão de
dureza para aquele que o mundo inteiro vê como o “país do futebol” — por
ser a única nação pentacampeã e também a única a ter comparecido a
todas as edições do evento, desde que um torneio capenga com a presença
de quatro escassas seleções europeias abriu a série em 1930, no Uruguai —
não leva em conta apenas as chances esportivas da equipe comandada por
Luiz Felipe Scolari. Mesmo em uma Copa maiúscula, que contará com a
presença de todas as equipes que já levantaram a taça, ninguém seria
louco de subestimar o Brasil, muito menos jogando em casa. O prognóstico
cauteloso se deve mais a fatores extracampo, que desta vez não
poderemos nos dar ao luxo de relegar a segundo plano. Haja o que houver,
seja quem for o campeão, existe desde já uma certeza: na Copa do Mundo
do Brasil, o Brasil vai se encontrar com o Brasil — o país onde se joga o
futebol mais vitorioso e festejado do mundo com o país que é pereba na
infraestrutura, perna de pau na educação, consistente na desigualdade
social e matador na corrupção. Nenhum dos dois é uma mentira, mas,
naturalmente, estranham-se no espelho.
O SONHO DIANTE DO ITAQUERÃO
Deyvid Arnaldo da Silva, de 11 anos, nascido e criado em Itaquera, bairro da Zona Leste de São Paulo onde se constrói o estádio em que Brasil e Croácia farão a abertura da Copa, tem um sonho alimentado nas peladas de terra batida: “Ser igual ao Messi, o melhor do mundo”. Improvável, mas só quem não conhece o Brasil diria que é impossível.
Isso torna a Copa de 2014 única: aquela que, mesmo ganhando, corremos o
risco de perder. Pela primeira vez, vencer nos gramados não será
suficiente. De forma incomparavelmente mais desafiadora do que em 1950,
quando o Mundial da Fifa era um certame paroquial comparado à
superprodução de hoje, será preciso vencer nos aeroportos, nos hotéis,
nos táxis, nas filas diante dos estádios e na segurança — em resumo, na
organização — um jogo em que o placar já foi aberto e nos é amplamente
desfavorável, com obras atrasadas, promessas que nunca saíram do papel,
orçamentos estourados e desculpas estropiadas como a do ministro do
Esporte, Aldo Rebelo, ao dizer que nunca viu a noiva chegar à igreja na
hora marcada. Ocorre que, se o Brasil bom de bola pode ser escalado no
papel de noiva, o país que se ofereceu para sediar a Copa é a própria
igreja. Apesar dos percalços, e ainda que haja andaimes no altar, tudo
transcorrerá, com alguma sorte, sem maiores problemas. Mesmo assim, o
jogo não estará ganho. Será necessário demonstrar ao vivo, diante dos
olhos do planeta, que o título de “país do futebol” não é um slogan
vazio que uma parcela substancial da população, reunida do lado de fora
da igreja com as mãos cheias de pedras em vez de saquinhos de arroz,
encara com rancor e desdém, como se não passasse de um artifício
publicitário destinado a enganar a massa.
QUEM VAI DRIBLAR OS BLACK BLOCS?
“Se eu tiver de assistir aos jogos ladeado por seguranças, não virei ao
Brasil”, disse o ex-craque francês Michel Platini, presidente da Uefa.
Sim, ele virá — e é muito provável que depare com manifestações como as
de junho passado, durante a Copa das Confederações.
Afinal, o futebol brasileiro é algo parecido com aquele surrado clichê
marxista, o “ópio do povo”, ou sua expressão cultural mais refinada? As
duas coisas, claro. Se eliminarmos uma delas, ficará incompleto o país
de Deyvid Arnaldo da Silva, 11 anos, nascido e criado em Itaquera,
bairro da Zona Leste de São Paulo onde, numa corrida contra o relógio,
está sendo construído o estádio em que Brasil e Croácia farão a partida
de abertura da Copa. Caçula e único homem entre os quatro filhos de
Josinaldo, um asfaltador pernambucano, e da faxineira Rosilda, Deyvid
planeja redimir os sonhos futebolísticos frustrados do pai e virar
jogador profissional. Para tanto, magrelo e mirrado, joga num campo de
terra batida da Rua Professor Leonidio Alegreti, nas cercanias do
Itaquerão, o estádio inacabado no qual a queda de um guindaste, em
novembro, matou dois operários e arrebentou o cronograma da obra. Deyvid
é pobre — quem paga a mensalidade da escolinha que ele frequenta é um
tio —, mas sonha alto. Mesmo sem dinheiro para o ingresso, imagina que
possa “dar um jeito de entrar no estádio” para ver seus ídolos de perto.
Isso ainda é pouco. “Quero ser igual ao Messi, o melhor do mundo”,
anuncia. Tudo muito improvável. Mas só quem não conhece o Brasil diria
que é impossível.
Goste-se ou não, é essa complicada equação que dominará 2014. Descartar
como mentirosa ou irrelevante qualquer das duas imagens do país — tanto
a que a paixão esportiva exalta quanto a que a consciência cívica
revela — seria desperdiçar uma oportunidade histórica. Não se viu o
quadro completo na exortação que o publicitário Nizan Guanaes, da
agência Africa, publicou na imprensa por ocasião do sorteio dos grupos
da Copa, na primeira semana de dezembro: “Agora, danem-se o aeroporto, o
motorista que não fala inglês, dane-se tudo. Agora, o que vai imperar é
a paixão pelo futebol, e, como sabemos, o amor é cego”. Como se os
aeroportos brasileiros precisassem de um empurrãozinho para se danar.
Pela mesma razão, o escritor e jornalista inglês John Carlin pareceu
ingênuo ao declarar sua incompreensão sobre a dinâmica da insatisfação
social brasileira no recente artigo que escreveu para VEJA. “Como isso
pode acontecer?”, espantou-se, acrescentando que, em sua opinião, “não
pode haver lugar mais adequado para celebrar a maior festa de futebol do
mundo”. O ex-craque francês Michel Platini, presidente da Uefa,
entidade que controla o futebol europeu, reforçou o coro contra
possíveis manifestações contrárias à Copa ao fazer em entrevista à Folha
de S.Paulo uma ameaça em que ninguém acreditou: “Se eu tiver de
assistir aos jogos ladeado por seguranças, por militares, não virei ao
Brasil”.
O PADRÃO FIFA É PIADA
A omissão das autoridades deixou sem segurança as vítimas da deprimente
pancadaria entre torcedores do Atlético Paranaense e do Vasco da Gama
em Joinville, no dia 8 de dezembro, na rodada de encerramento do
Campeonato Brasileiro. Dificilmente teremos confusões dentro dos
estádios da Copa, mas a sensação de descontrole de um campeonato que
terminou nos tribunais é forte e ruim.
Sim, Platini virá e, se for necessário, espera-se que encontre um
esquema capaz de lhe garantir, e a todos os participantes, a segurança
que a omissão das autoridades negou às vítimas da deprimente pancadaria
entre torcedores do Atlético Paranaense e do Vasco da Gama em Joinville,
no dia 8 de dezembro, na rodada de encerramento do Campeonato
Brasileiro. Desvincular as palavras dos fatos é má política e já havia
tornado a presidente Dilma Rousseff alvo de piadas quando, em abril do
ano passado, ela tomou nossa autoimagem ufanista como expressão da
verdade em seu discurso na inauguração da Arena Fonte Nova, em Salvador,
afirmando que “somos um país conhecido por ser insuperável no campo,
mas estamos mostrando que somos insuperáveis também fora de campo”. A
alguns metros de distância, do lado de fora do estádio, uma gigantesca
placa de sinalização bilíngue traduzia “saída” por entrace — um erro
duplo, pois o correto é entrance e significa “entrada”. Repetindo
Carlin: “Como isso pode acontecer?”.
CRAQUE E CABEÇA DE BAGRE
Quando uma expressão cultural se entranha a tal ponto na bagagem
coletiva de um povo, como ocorreu com o futebol no Brasil, é preciso
tratá-la com respeito. A pista sobre quem somos de fato, naquele espelho
metafórico que a Copa erguerá diante de nós, pode muito bem estar à
vista de todos no traço mais decantado de nosso estilo: o improviso, a
recusa do planejamento, a solução encontrada de estalo. A mesma
característica que faz do jogador de futebol um craque e do
administrador, um cabeça de bagre.
A chance de equalizar o Brasil do sonho e o Brasil da realidade começa
pelo reconhecimento de que o “país do futebol”, sendo um mito, está
longe de ser uma mentira. Para sustentar o argumento político desvairado
que ronda muitas conversas pré-Copa — que o esporte mais popular do
mundo não passa de uma impostura controlada por uma entidade imperial, a
Fifa, para que grandes empresas faturem alto à custa do torcedor
ingênuo —, é preciso jogar no lixo a bonita história do futebol
brasileiro, uma epopeia que coincide bem demais com a própria evolução
política e social do país no século XX. Entre as narrativas de
construção da identidade nacional, a que gira em torno da bola e embala
os sonhos de meninos como Deyvid da Silva é a mais bem-sucedida, tanto
junto ao público interno quanto no concerto das nações. Na galeria de
heróis dessa saga podemos destacar os seguintes personagens, em ordem de
aparecimento (cada um com seu apelido, como convém a criaturas
mitológicas): Arthur Friedenreich, El Tigre; Leônidas da Silva, o
Diamante Negro; Pelé, o Rei; Ronaldo, o Fenômeno; e o noviço Neymar, a
maior esperança brasileira em 2014, ainda à espera de uma alcunha
definitiva em substituição à depreciativa Filé de Borboleta que o
técnico Vanderlei Luxemburgo tentou lhe pespegar. Todos negros ou
mestiços, não fosse essa uma narrativa de ocupação de espaços por
jogadores pobres e de como eles talharam na pedra bruta de um jogo
europeu a feição cheia de surpresas e linhas sinuosas que o mundo
reverencia como a “escola brasileira” — aquilo que o cineasta italiano
Pier Paolo Pasolini, em artigo escrito em 1971 sob o impacto do tri,
chamou de “futebol de poesia” em oposição ao “futebol de prosa” dos
europeus.
“SOMOS INSUPERÁVEIS”
Dilma Rousseff disse em seu discurso na inauguração da Arena Fonte
Nova, em Salvador (na foto, com o governador Jaques Wagner): “Somos um
país conhecido por ser insuperável no campo, mas estamos mostrando que
somos insuperáveis também fora de campo”. Verdade. A alguns metros de
distância, do lado de fora do estádio, uma gigantesca placa de
sinalização bilíngue traduzia “saída” por entrace — um erro duplo, pois o
correto é entrance e significa “entrada”.
É inegável que os amantes do esporte espalhados pelo mundo tendem a
mitificar a época de ouro da seleção brasileira, como se nossos grandes
craques do passado fossem seres sobrenaturais que nunca erravam um
passe, e contra esse ideal inatingível julgam com severidade excessiva
os jogadores atuais. Também é óbvio que tal mito foi construído
historicamente em jornadas vitoriosas que pela primeira vez levaram
críticos insuspeitos, como o historiador inglês Eric Hobsbawm, a
promover o futebol — só um jogo, ora — à categoria de expressão
artística. Sim, estamos falando da principal contribuição estética que o
Brasil deu ao mundo, segundo o próprio mundo, com a música popular
garantindo honrosamente o vice-campeonato. Tudo isso pertence à esfera
da lenda, mas vale lembrar a lição de Joseph Campbell, o grande mitólogo
americano: “Os mitos dão pistas das potencialidades espirituais da vida
humana”. Quando uma expressão cultural se entranha a tal ponto na
bagagem coletiva de um povo, como ocorreu com o futebol no Brasil, é
preciso tratá-la com respeito. A pista sobre quem somos de fato, naquele
espelho metafórico que a Copa do Mundo erguerá diante de nós, pode
muito bem estar à vista de todos no traço mais decantado de nosso
estilo: o improviso, a recusa do planejamento, a solução encontrada de
estalo. A mesma característica que faz do jogador de futebol um craque e
do administrador, um cabeça de bagre. O Brasil é um só, afinal.
Colaborou Renata Lucchesi
* Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista, colaborador do site de VEJA, autor do romance O Drible
Uma epopeia de afirmação
Os grandes nomes da história do futebol brasileiro seguem a trajetória clássica do mito: a do homem comum submetido a provações em série, até se impor no epílogo como herói
A mais completa versão da epopeia de afirmação do futebol brasileiro
foi escrita em 1947 pelo jornalista esportivo Mario Filho, que anos mais
tarde daria nome ao Maracanã. O livro O Negro no Futebol Brasileiro —
relançado com acréscimos substanciais em 1964 para incorporar a era Pelé
— imprime ao relato jornalístico da popularização de um jogo
inicialmente elitista um caráter de luta cultural e racial que guarda
paralelos curiosos com outras narrativas de apropriação do esporte por
grupos politicamente marginalizados, inclusive nas metáforas musicais.
No estilo que nossos jogadores negros e mulatos impuseram ao jogo
ríspido nascido na Inglaterra o sociólogo Gilberto Freyre, admirador de
Mario, viu “a capoeiragem e o samba”. Em seu livro Futebol ao Sol e à
Sombra, o escritor uruguaio Eduardo Galeano elogiou o futebol jogado no
Uruguai e na Argentina dizendo que “nos pés dos primeiros criollos
nasceu o toque: a pelota tocada como se fosse violão, fonte de música”. E
no jazz esfuziante dos anos 1920-30 o escritor americano Nelson George,
autor de Elevating the Game (Elevando o Jogo), identificou o germe do
improviso e das variações de ritmo com que os jogadores negros
revolucionaram o basquete americano.
Não se trata de uma semelhança acidental. Em todos esses casos, o que
se conta é menos uma história documentada do que uma parábola de
afirmação cultural que pode ser reduzida ao esquema clássico do mito: um
homem comum (no caso, uma coletividade) é submetido a provações em
série, inclusive passando perto de morrer (o trauma avassalador da
derrota de 1950), até se impor no epílogo como herói (a consagração do
título mundial). Também não é casual que a primeira edição do livro de
Mario Filho tenha vindo à luz nas sombras do Estado Novo: seu
nacionalismo tingido de otimismo racial sepultava as teorias eugenistas
para exaltar a miscigenação como a contribuição mais original da
civilização brasileira.
O REDENTOR DO MARACANAZO
O maior de todos os heróis, Pelé, só entraria em cena no papel de
redentor após o Maracanazo de 1950, que o antropólogo Roberto DaMatta
chamou de “talvez a maior tragédia da história contemporânea do Brasil”.
A consagração de Pelé como rei do futebol em 1958 deixou para seus
sucessores — mesmo aqueles dotados de brilho intenso, como Ronaldo e
Neymar — o fardo da comparação com gigantes, como se o tempo do mito
tivesse chegado ao fim e agora fosse a vez de os simples mortais se
virarem como podem.
Acervo Carlos Moskowski
O primeiro capítulo dessa saga corresponde à República Velha, quando o
fim da escravidão era notícia ainda fresca e aquele jogo de regras
sistematizadas por lordes ingleses branquelos no século XIX entretinha
jovens da classe dominante em seus clubes, sendo por isso mesmo
desprezado por intelectuais identificados com o povo, como Graciliano
Ramos. “Temos esportes em quantidade”, escreveu o escritor alagoano em
crônica de 1921. “Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras? O
futebol não pega, tenham a certeza.”
Ocorre que, mesmo àquela altura, já tinha pegado. Mulato claro de olhos
verdes e cabelo alisado, dado a dribles e chutes de efeito, o
paulistano Arthur Friedenreich, filho de um alemão e uma negra
brasileira, firmara-se dois anos antes como o primeiro grande ídolo do
futebol nacional ao marcar o gol da vitória na final do Campeonato
Sul-Americano de seleções contra o Uruguai — a primeira conquista
relevante da equipe brasileira. O negro no futebol brasileiro faz de
Friedenreich o primeiro herói dessa história, mas a trama de superação
de dificuldades exigia mais do que um mulato disfarçado de branco.
Coincidindo com a Revolução de 30, começa assim o segundo capítulo, em
que o amadorismo hipócrita dá lugar ao profissionalismo e o protagonismo
é assumido por um negro incontornável: o carioca Leônidas da Silva, que
ganhou a reputação — contestada por alguns — de ter inventado a
acrobática jogada chamada bicicleta. Artilheiro da Copa de 1938 e
principal jogador da seleção brasileira que ficou em terceiro lugar
naquela competição, Leônidas teve sua carreira internacional prejudicada
pelo hiato da II Guerra, que engoliu as Copas de 1942 e 1946, mas foi
uma espécie de prenúncio de Pelé.
O maior de todos os heróis só entraria em cena no papel de redentor
após o Maracanazo, que o antropólogo Roberto DaMatta chamou de “talvez a
maior tragédia da história contemporânea do Brasil”. A consagração de
Pelé como rei do futebol, que encerra o livro de Mario Filho em tom
ufanista, deixou para seus sucessores — mesmo aqueles dotados de brilho
intenso, como Ronaldo e Neymar — o fardo da comparação com gigantes,
como se o tempo do mito tivesse chegado ao fim e agora fosse a vez de os
simples mortais se virarem como podem. A verdade, porém, é que a bela
epopeia do futebol brasileiro ainda está sendo escrita. Em junho começa
mais um capítulo.
Fonte: Sergio Rodrigues-Revista Veja -
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