Enquanto
a esquerda pensa na próxima geração, seus adversários pensam no máximo
na próxima eleição, e por isso estão perdendo todas.
A política é cada vez mais um terreno para profissionais.
Em
27 de julho de 2004, alguns dos grandes estrategistas da esquerda
americana foram mobilizados para plantar uma semente: a eleição do
primeiro presidente negro dos EUA. O palco era a convenção nacional do
Partido Democrata em Boston e a cena política americana nunca mais foi a
mesma depois desse dia.A política é cada vez mais um terreno para profissionais.
O breve discurso daquele desconhecido político de Illinois, que acabou se tornando a estrela da festa, não tinha uma única palavra fora do lugar. Cada frase do texto escrito por ele com a ajuda da dupla David Axelrod e Robert Gibbs, seus principais assessores políticos até hoje, transformaram um professor universitário, ativista de movimentos de esquerda, senador estadual e candidato ao senado federal, em alguém que a imprensa passou a tratar instantaneamente como um novo Martin Luther King Jr.
As frases utilizadas eram basicamente uma compilação cuidadosa dos seus discursos de campanha ao senado federal naquele ano, testados nos meses anteriores nas mais diversas plateias e ambientes. Há poucas dúvidas de que, não fosse este discurso na DNC em Boston, não haveria um presidente Obama quatro anos depois. Em apenas 17 minutos, aquele obscuro político de Chicago assumia para o país a face da renovação da política americana, iniciando a corrida para tomar a vaga de Hillary Clinton e se tornar o 44º presidente americano.
Neste histórico dia de 2004, Obama defendeu tudo que hoje, como presidente, nega: o sonho americano, a economia de livre mercado e a sociedade pós-racial. Com o país hipnotizado em frente à TV, ele disse a frase que marcaria sua carreira política para sempre: “there’s not a black America and white America and Latino America and Asian America; there’s the United States of America.”
Ao se apresentar pela primeira vez em cadeia nacional, Barack Obama criou as bases para a construção do mito. Ele abre o discurso dizendo a todos que vinha do mesmo estado que Abraham Lincoln, colando sua imagem no venerado presidente que aboliu à escravidão. Foi seu cartão de visita e sua principal mensagem naquele dia: eu sou o filho legítimo da luta pelos direitos civis dos anos 60, eu sou a prova de que vencemos o racismo, eu sou o novo Lincoln. Não sou um político, sou um símbolo.
Na eleição presidencial anterior, em 2000, o Partido Democrata já havia feito um teste. O carismático deputado Harold Ford, Jr., com apenas 30 anos na época e também de ascendência negra, foi o keynote speaker da convenção do partido. Seu discurso foi muito bem recebido pela plateia, mas como Ford não venceu a eleição daquele ano ao senado, seu nome perdeu força para vôos mais altos. Sua aparição, mesmo assim, serviu como um valioso balão de ensaio.
Em 2001, a série de TV mais popular dos EUA, “24 horas”, teve como protagonista um presidente negro. O personagem David Palmer, como Obama, era também um senador do Partido Democrata que chegava à presidência, vendido ao telespectador como um político próximo da perfeição. Até seu maior escândalo, a revelação pública de um assassinato cometido por seu filho, era moralmente justificável, já que tinha sido motivado pelo estupro da sua filha por um branco.
Tudo na trama reforçava a imagem de David Palmer como um presidente com uma estatura moral fora do comum, um homem-santo e incorruptível, pós-racial e acima do bem e do mal, e mesmo quando se rendia ao varejo da política era sempre em nome de um bem maior. Foram quase 200 episódios em oito temporadas, de 2001 a 2010, e não há qualquer dúvida de que David Palmer também ajudou a preparar, mesmo que inadvertidamente, o terreno para o surgimento de Barack Obama.
O endosso mais relevante e decisivo para popularizar Obama de vez foi, claro, de Oprah Winfrey. A mais importante e influente apresentadora da TV americana abraçou sem cerimônia o candidato no seu programa e fora dele, participando de comícios em todo país e mergulhando de corpo e alma na sua campanha eleitoral, quebrando decisivamente eventuais resistências ao seu nome nas famílias americanas. O apoio apaixonado e militante de Oprah foi talvez o fator isolado mais importante para a consolidação do nome de Barack Obama como um candidato viável à presidência da república.
Barack Obama é entendido por muitos desavisados como uma obra do acaso ou produto da crise econômica de 2008 e não fruto deste árduo, corajoso, criativo, competente, regiamente financiado, ousado e perseverante trabalho de estratégia política da esquerda americana, aquela herdeira da geração dos revolucionários de 1968.
Assim que os votos foram contados em 2004 e George W. Bush reeleito, alguns analistas davam a esquerda americana como morta, mas ela estava, como sempre esteve, trabalhando e com olhos já voltados para 2008. Hoje os engenheiros de obra pronta acreditam que viabilizar a candidatura de um negro com sobrenome Hussein em meio à reeleição de Bush era quase inevitável, um “momento histórico”, pela incapacidade de entender que esse tal “momento histórico” foi fruto de uma estratégia muito bem planejada e executada.
Hoje é o Partido Republicano que está dividido e nas cordas, apanhando de forma sistemática e diária na imprensa. Na última semana, o senador texano Ted Cruz, ligado ao Tea Party, ficou durante 21 horas seguidas defendendo a retirada de fundos orçamentários para a implementação do sistema de saúde socialista nos EUA, que certamente completará a promessa de Barack Obama de “transformar para sempre os EUA” causando danos irreparáveis à economia do país. O senador republicano tomou conta do noticiário, francamente desfavorável a ele como era de se esperar, mas encantou parte do eleitorado por sua ousadia e firmeza de caráter contra o impopular Obamacare. Só que isso já não é mais suficiente.
Ted Cruz, 43 anos, é uma figura ímpar. De origem hispânica, foi um advogado brilhante com credenciais acadêmicas inquestionáveis. Formado em Harvard, tornou-se depois uma estrela radiante em Princeton, um debatedor admirado e respeitado, além de um orador hábil e persuasivo. Há quem diga que o ódio que desperta no establishment político de Washington é exatamente por ser “um deles”, um intelectual da Ivy League que, ao contrário do que se espera dos membros da elite acadêmica do país, é um expoente do conservadorismo, sem concessões ao pragmatismo das velhas ratazanas da capital.
Imaginar um Ted Cruz candidato a presidente americano hoje é algo tão improvável e bizarro como Barack Obama em 2004, mas se Cruz contasse com a máquina eleitoral democrata, que inclui a imprensa, as universidades, as celebridades e Hollywood, seria imbatível em 2016.
Hoje não basta mais um desconhecido, mesmo que brilhante, para se fazer um candidato vencedor à presidência dos EUA e, sem contar com os recursos que Obama contou, Ted Cruz não tem chance alguma, a despeito de suas inegáveis qualidades pessoais e sua determinação ideológica admirável.
Aquele Barack Obama apresentado ao mundo na convenção democrata de 2004 foi escolhido depois de anos de doutrinação política que contou com mentores como Frank Marshall Davis e Bill Ayers, além de muita experiência no ativismo político e na política do seu estado. Sua carreira, cuidadosamente planejada nos mínimos detalhes, é uma prova de como é complexo o marketing político atual, que agora mergulha também no Big Data e na revolução tecnológica das redes sociais.
A máquina que elegeu Obama em 2008 e reelegeu em 2012 começa a especular, timidamente ainda, o nome do advogado e ambientalista Van Jones para 2016, outro negro com aparência de galã de Hollywood, figura fácil nos talk shows da TV americana e ativista político com todas as credenciais ideológicas marxistas exigidas para suceder o atual presidente. Se os patrocinadores da campanha de Barack Obama abraçarem o nome de Van Jones, Hillary Clinton não dará nem para o começo e será novamente atropelada nas primárias. O tempo dirá.
No Brasil, os profissionais estão trabalhando dia e noite para reeleger Dilma Rousseff. No final de junho deste ano, em meio às manifestações que tomaram conta do país, Franklin Martins foi reincorporado por Lula ao time dos principais de estrategistas do PT para liderar o front de batalha da comunicação, junto com João Santana e Rui Falcão.
Em poucas semanas, os resultados falam por si. A imprensa passou a defender abertamente a importação dos cubanos de jaleco e demonizar os médicos brasileiros como “coxinhas” reacionários e corporativistas. As organizações Globo, que hoje exibem às seis da tarde na TV uma novela que é uma espécie de telecurso segundo grau de doutrinação comunista, pediu formalmente desculpas pelo seu apoio à revolução de 1964 e seu noticiário está mais favorável do que nunca ao petismo.
O mais impressionante dos trabalhos recentes dos estrategistas de comunicação de Dilma Rousseff foi a invenção desse factóide chamado “espionagem americana”, a partir de fragmentos de informação vazados pelo neo-russo Edward Snowden e o ativista antiamericano, dublê de jornalista do The Guardian, Glenn Greenwald. A pantomima, por mais ridícula que possa parecer a qualquer bípede minimamente letrado, já virou tema de discurso da Dilma na ONU para captação de imagens para o programa eleitoral e revitalização da militância, um pouco combalida pelo mensalão mas que com a reedição do velho antiamericanismo já está de novo pintada para a guerra. Militante não precisa de argumentos racionais, inimigos externos, bodes expiatórios e palavras de ordem bastam para partirem pra rua, como os populistas sabem desde sempre.
Os prováveis competidores de Dilma na eleição do ano que vem, Marina Silva, Eduardo Campos e Aécio Neves, foram praticamente banidos do noticiário, não merecendo mais do que citações pontuais e normalmente neutras ou negativas. Marina Silva e Eduardo Campos, satélites do petismo, não representam alternativas no campo ideológico, e o provinciano Aécio Neves, com suas inserções publicitárias constrangedoras e surpreendentemente amadoras até para os padrões tucanos, não mostra cacife eleitoral para sequer chegar ao segundo turno. O PSDB continua sendo a oposição que o PT pediria a Deus se acreditasse Nele.
No dia em que Aécio Neves começar a incomodar, se é que esse dia chegará, faço uma previsão: o noticiário brasileiro será invadido subitamente pelo “mensalão mineiro”, não se falará de outra coisa, e Aécio irá para a defensiva e sua candidatura perderá o gás. Se nada surpreendente acontecer até o ano que vem, a reeleição de Dilma é líquida e certa.
Se o resultado eleitoral de 2014 é mais que provável, a reeleição de George W. Bush, no campo ideológico oposto, era também certa em 2004 e nem por isso a esquerda americana deixou de trabalhar e plantar a semente para a eleição do seu candidato em 2008. Na falta de chances reais de vitória em 2004, os estrategistas do partido democrata aproveitaram o momento para ao menos apresentar ao eleitorado um candidato ideológico e carismático para a próxima eleição e deu certo. Mas quem está fazendo trabalho semelhante no Brasil de hoje?
A própria esquerda, claro, com Marina Silva e Eduardo Campos, dois políticos que investem na acumulação de cacife eleitoral para 2018, com Dilma fora da cédula e um Lula que, sem especular sobre seu estado saúde, pode não ser mais ativo no processo até lá.
A eleição de 2014 no Brasil deveria ser aproveitada pelas forças políticas fora do petismo e da esquerda, se é que existem, para iniciar o mesmo movimento feito por Obama em 2004, Marina em 2010 ou que Campos fará ano que vem. É a hora de mirar em 2018, já que cinco anos são mais do que suficientes para a viabilização de uma estratégia eleitoral consistente e que realmente consiga emplacar o próximo presidente.
É claro que o campo de batalha não é só esse. A ocupação de espaços e a luta em todas frentes, especialmente a cultural, é uma luta ainda mais importante e que Olavo de Carvalho sempre nos lembra, mas a apresentação de um nome para o eleitorado nacional ano que vem pode ser uma boa oportunidade para uma candidatura vencedora em 2018. Para isso alguém deveria estar disposto a trabalhar diligentemente cinco anos para viabilizar a candidatura ou ao menos abrir uma alternativa política fora da esquerda. Quem tem estômago e resiliência para perseverar durante tanto tempo num projeto político no Brasil?
Enquanto a esquerda pensa na próxima geração, seus adversários pensam no máximo na próxima eleição, e por isso estão perdendo todas. A cada eleição perdida, a tarefa de tirar o petismo do poder vai ficando mais difícil. O PT já está no terceiro mandato presidencial consecutivo, tem quase 80% do Congresso na base aliada e recentemente mostrou sua força avassaladora até no judiciário. O aparelhamento da máquina pública levará décadas para ser desfeito.
A política é cada vez mais um terreno para profissionais. Numa entrevista poucos meses antes de morrer, pediram à Nelson Rodrigues uma mensagem ao jovens e ele respondeu: “por favor, envelheçam”. Meu conselho aos adversários do petismo: sigam o que disse o anjo pornográfico e ganhem alguns cabelos brancos. Não há mais lugar para amadores.
Publicado na Reaçonaria.
Alexandre Borges é diretor do Instituto Liberal.
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