Conhecer a verdade total sobre o que houve na ditadura é essencial, mas isso não significa desfigurar a Lei da Anistia, que colaborou com o surgimento do Brasil democrático
Pela undécima vez, aparece a opinião de que a Lei da Anistia, de 1979, precisa ser revista. Agora, quem advoga essa tese é o novo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que, em parecer dirigido ao Supremo Tribunal Federal (STF), observa que o Brasil deve se submeter às convenções internacionais, segundo as quais os chamados crimes contra a humanidade, como a tortura e a morte de opositores políticos, são imprescritíveis. No fundo, Janot ataca a essência da lei brasileira, que estabeleceu como “ampla, geral e irrestrita” a anistia a tantos quantos, de um lado ou de outro (e sempre é preciso lembrar que os “outros” também cometeram crimes), se envolveram nos embates que marcaram as duas décadas de vigência da ditadura militar no país.
O procurador-geral não está só. Da mesma ideia compartilha a Ordem dos Advogados do Brasil, autora de uma ação ainda não transitada em julgado pelo STF, defendendo que sejam excluídos como beneficiários da Lei de Anistia os militares e agentes policiais que violaram direitos humanos durante o regime discricionário, de 1964 a 1985. Na prática, significaria identificá-los e levá-los a julgamento agora para purgar as transgressões que cometeram há meio século. Beneficiados pelo perdão “irrestrito” seriam apenas os que, do outro lado da trincheira, empunharam armas e também cometeram crimes contra a vida de inocentes e contra a ordem pública. Ainda que devidamente reconhecidos pela causa que os levou a arriscar a própria vida, pode-se contestar os métodos igualmente violentos de que se utilizaram muitos dos opositores à ditadura.
O tema é polêmico e, se examinado apenas sob o ponto de vista jurídico, pode-se até encontrar razões plausíveis para que prospere o entendimento de que a anistia deveria ter caráter parcial e não geral. Entretanto, esta é uma visão que não leva em conta os fatores políticos, sociais e o contexto histórico que inspiraram a edição da lei de 1979. Impossível não lembrar ou reconhecer que ela foi fruto de acordo sofridamente negociado entre o regime e as principais forças da sociedade nacional que contra ele lutavam – dentre as quais a própria OAB, a Igreja Católica e inúmeras lideranças da resistência político-partidária de então – e que admitiram o caráter “amplo, geral e irrestrito” presente na letra e no espírito da anistia.
Portanto, principalmente à luz dos efeitos notáveis que se seguiram à sanção da lei, parece-nos imprudente e descabido o crescente movimento revisionista. Etimologicamente, anistia significa esquecimento – mas note-se que não devem ser esquecidos os posteriores eventos decorrentes da lei. O primeiro deles foi o de acelerar o esboroamento do regime ditatorial. Outros sobrevieram, como o de permitir a consequente redemocratização do país, a realização de eleições diretas, a promulgação de uma nova Constituição em 1988 e, por fim, a participação na vida política e institucional do país dos que lutaram contra a ditadura e participaram da construção da própria Lei da Anistia. Graças a este processo gradativo, sem mais derramamento de sangue, o Brasil foi às urnas para eleger por quatro vezes presidentes da República que tiveram nele importante e decisiva participação.
Claro que a história guardada nos arquivos secretos da repressão não deve cair no limbo do desconhecimento. Deve, sim, vir à tona – papel que as Comissões da Verdade estão certamente cumprindo, da mesma forma como, antes delas, vítimas da ditadura, incluindo seus descendentes, obtiveram alguma reparação moral e pecuniária pelo sofrimento que lhes foi imposto. Entretanto, remexer feridas de modo a desfigurar a essência original da lei já não aproveita à nação democrática e livre que a anistia “ampla, geral e irrestrita” tornou possível.
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