Gazeta do Povo
A notícia de que, em 2024, brasileiros que recebem dois salários mínimos sentirão a mordida do leão, tendo de pagar Imposto de Renda Pessoa Física, despertou uma indignação justa, por duas razões. A primeira delas é a situação em si, já que novamente os cidadãos mais pobres acabam punidos sem o reajuste da tabela do IRPF, contrariando os princípios mais básicos da justiça tributária. A segunda é o enorme descompasso entre essa realidade e as promessas de Lula, tanto durante a campanha eleitoral quanto depois da posse.
A falta de reajuste da tabela do IRPF representa um aumento indireto de impostos por razões óbvias. À medida que as remunerações dos trabalhadores são corrigidas – mesmo quando os reajustes acabam ficando abaixo da inflação – e a tabela não é alterada, brasileiros que antes estavam isentos do IRPF acabam entrando na faixa sujeita a tributação, como acaba de acontecer com quem recebe dois salários mínimos, e outros que já pagavam o IRPF mudam de faixa, pagando alíquotas maiores. Consequentemente, o governo arrecada mais sem precisar realizar nenhum tipo de ato normativo nem se empenhar pela aprovação de um projeto de lei no Congresso. Ainda que as alíquotas sejam progressivas, é evidente que colocar na boca do leão cada vez mais brasileiros, com remunerações cada vez mais baixas em termos de salários mínimos, é caminhar na direção diametralmente contrária do que preconiza a justiça tributária, pela qual quem tem mais paga mais.
O brasileiro fica com o pior dos dois mundos: uma tributação bastante pesada sobre produção e consumo, que não é compensada por uma taxação mais leve sobre renda e patrimônio; pelo contrário, sem as devidas correções o garrote está cada vez mais apertado
E não faltou quem apontasse a enorme contradição entre o discurso e a prática do presidente Lula. Nos últimos meses, o petista e seus apoiadores na classe política e na imprensa têm dito que a promessa de isentar do IRPF quem ganhasse até R$ 5 mil mensais seria cumprida gradualmente até o fim do mandato. No entanto, uma busca rápida mostra que não era bem isso que Lula e o PT alardeavam. O próprio site do PT traz uma publicação, datada do período de transição, afirmando que “uma das principais propostas da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, a correção da tabela do Imposto de Renda, com isenção para quem ganha até R$ 5 mil, é uma necessidade urgente e integra a lista de medidas que serão implementadas em 2023” (destaque nosso).
Obviamente, um reajuste destas dimensões teria um enorme efeito negativo sobre a arrecadação, e isso já era admitido pelo próprio Lula durante a campanha. Mas, enquanto minimizava uma promessa, fazia outra – que também deixaria de cumprir. Em discurso a metalúrgicos no ABC paulista, em agosto de 2022, o petista afirmou que “nós vamos ter que discutir, porque na hora que você fizer isso, você vai ter que deixar de arrecadar uma quantidade enorme de dinheiro (...) agora, o reajuste, independentemente de qualquer coisa, a gente vai fazer isso todo ano”. Pois o brasileiro não viu nem uma coisa nem outra no ano recentemente encerrado: não apenas o patamar de isenção não foi elevado para R$ 5 mil, como também não houve reajuste nenhum, ainda que ínfimo.
No entanto, é preciso dizer que o congelamento da tabela não é obra exclusiva de Lula. O último reajuste ocorreu no governo de Dilma Rousseff, para o IRPF de 2016, que tinha 2015 como ano-base – e ainda assim ficou muito abaixo da inflação: contra um IPCA de 10,67% em 2015, o reajuste foi de 6,5% nas duas faixas de menor renda (incluindo os isentos), 5,5% na terceira faixa e 4,5% nas duas faixas de maior renda. Nem Michel Temer, nem Jair Bolsonaro mexeram na tabela – este último também prometeu a isenção para quem recebesse até R$ 5 mil, tanto na campanha vitoriosa de 2018 quanto nas eleições de 2022, mas o máximo que fez foi propor elevar o limite de isenção para R$ 2,5 mil dentro de um projeto de lei mais amplo de reforma tributária fatiada, que ficou parado no Congresso. Essa escolha dificultou o reajuste ao deixá-lo atrelado a outros itens bem menos consensuais, como a taxação sobre lucros e dividendos, enquanto em ocasiões anteriores o Congresso aprovou tranquilamente as medidas provisórias que atualizaram a tabela do IRPF.
O brasileiro, portanto, fica com o pior dos dois mundos. Uma tributação bastante pesada sobre produção e consumo – o pior tipo de imposto em termos de justiça tributária, já que rico e pobre pagam exatamente o mesmo valor sobre um produto ou serviço –, que não é compensada por uma taxação mais leve sobre renda e patrimônio; pelo contrário, sem as devidas correções o garrote está cada vez mais apertado. E esta distorção, ao que tudo indica, não será eliminada pela reforma tributária que o Congresso vem analisando – nem no projeto que implanta o IVA dual, já aprovado, nem nas próximas etapas, que pretendem reformar outras partes do sistema tributário.
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