Dartagnan da Silva Zanela
Miguel de Cervantes nos sugere, floreando com as letras de um jeito que apenas ele sabia fazer, que é muito mais saboroso o caminho que a pousada onde repousamos a carcaça. Seguindo pela mesma trilha, o poeta Antonio Machado certa feita havia dito que o caminhante se faz na caminhada, não na chegada (na verdade ele disse: caminante, no hay camino: se hace camino al andar).
E nĂłs, figurinhas e figurĂ”es do sĂ©culo XXI, sem nos darmos conta, preferimos acorrentar o nosso olhar aos possĂveis e desejĂĄveis momentos de repouso, fazendo desses momentos os grandes objetivos da nossa vida; objetivos esses que, no nosso entender, deveriam ser conquistados para que ela, a nossa porca vida, seja [supostamente] realizada de forma plena.
Quantas e quantas vezes passamos os nossos dias, lamentando conosco mesmo - e com os nossos familiares, amigos e colegas - que queremos porque queremos que o dia passe logo, bem rapidinho; quantas e quantas vezes suplicamos em nosso Ăntimo para que os dias da semana voem em revoada para que possamos desfrutar do nosso abençoado fim de semana; quantas vezes rogamos para que o ano se vĂĄ de vereda e, assim, chegue logo o fim do mesmo, e tenhamos o Natal, as festas e, Ă© claro, as fĂ©rias.
Enfim, queremos que os anos sigam ligeiros, feito ĂĄgua de corredeira, para podermos nos aposentar e, Ă© claro, repousar definitivamente das fadigas de uma vida vivida em grande correria.
Queremos porque queremos que o tempo passe, sem demora, para que possamos chegar ao momento do repouso, pouco importando quanto ele venha a durar, ou o que o dito-cujo venha a significar.
E, de tanto queremos isso, deixamos de viver Ă s inĂșmeras alegrias e desventuras da vida, com tudo o que elas tĂȘm a nos regalar.
E reparem como fazemos isso todo santo dia, sem pestanejar. Torcemos para que a vida passe, para que possamos deixar de viver, para que paremos de ficar fugindo da vida e, enfim, possamos morrer. Morrer sem ter realmente vivido. Olhando melancolicamente para os tempos que se foram, repetindo os versos de Manuel Bandeira, vendo a vida que poderia ter sido, mas nĂŁo foi.
Em resumidas contas é isso que estamos dizendo a plenos pulmÔes, aos quatro ventos, quando, por exemplo, iniciamos um dia de trabalho desejando que ele simplesmente termine para não mais estarmos ali, presentes, ou fingindo que estamos.
Ă exatamente isso que cantamos nos ĂĄtrios do nosso coração quando nos atiramos sobre uma carteira escolar, feito um saco de batatas, com as ventas chumbadas na tela de um celular, arredio a qualquer possibilidade de aprendizado - de qualquer coisinha, Ăștil ou nĂŁo - ansiando estar em qualquer outro lugar para poder se debruçar em outro mĂłvel e permanecer com a face grudadinha no mesmo aparelho eletrĂŽnico, ou em outra tranqueira similar.
NĂŁo queremos nos fazer presentes porque, muitas e muitas vezes, consideramos o lugar onde estamos, as tarefas que nos foram confiadas, indignas da formosura crĂtica da nossa pessoinha singular e, Ă s vezes, isso pode atĂ© ser verdade; porĂ©m, penso que deverĂamos nos fazer duas perguntinhas, pra lĂĄ de marotas, antes de afirmarmos uma coisa desse naipe.
Antes de qualquer coisa, jĂĄ paramos para considerar que nĂłs nĂŁo somos minimamente dignos daquilo que estamos rejeitando com nossa maneira petulante de viver? Por um acaso, jĂĄ paramos para considerar que, talvez, nĂŁo sejamos dignos merecedores nem daquilo que recebemos, que nos foi confiado? EntĂŁo, seria interessante matutarmos sobre isso.
Mas, como havĂamos dito, vamos supor que realmente o quadro que dĂĄ forma ao nosso dia a dia seja, de fato, um misto de tĂ©dio, indignidade e aviltamento. Bem, diante disso, podemos levantar um outro ponto: o que nĂłs temos feito para nos elevar diante desse quadro e, deste modo, elevĂĄ-lo conosco? O que temos feito para dignificĂĄ-lo? Pois Ă©. Foi o que eu pensei.
Sim, a resposta adequada a todas essas indagaçÔes nĂŁo sĂŁo difĂceis de serem encontradas, pouco importando quais sejam as circunstĂąncias que dĂŁo o tom de nossos dias. O problema Ă© que, tal resposta, exige de nossa parte uma disposição a abraçar a cruz nossa de cada dia que, em resumidas contas, Ă© uma abertura para uma vida virtuosa, para a maturidade, que negamos cotidianamente com mil e um subterfĂșgios.
Preferimos a Ăąnsia constante pelo momento fugidio da irreverĂȘncia das horas vazias do que encarar, com destemor, o vazio que, muitas e muitas vezes impera em nosso coração, que nos impede de abraçar, com força, cada momento que dĂĄ forma aos nossos dias e reconhecer, em cada um deles, uma abertura possĂvel para a beleza, para a bondade, para a verdade e que, por sua deixa, poderĂĄ nos impulsionar para um vislumbre da eternidade.
Podemos dizer que, cada um de nĂłs, cada um Ă sua maneira, vive de modo similar a personagem, interpretada por Adam Sandler, no filme Click (2006). Personagem essa que recebe de um anjo um controle remoto que lhe permite pular os momentos, dias e meses que considerasse chato. Obviamente, o resultado foi tĂŁo trĂĄgico quanto cĂŽmico. NĂŁo tĂŁo cĂŽmico quanto o modo como nĂłs fugimos da nossa vida, mas, com certeza, tĂŁo trĂĄgico quanto a maneira como insistimos em fugir de nĂłs mesmos.
Por isso, procuremos nos fazer presentes, para que a nossa vida nĂŁo termine sendo uma grande ausĂȘncia mediada por conexĂ”es vazias.
* O autor, Dartagnan Zanela, Ă© professor, escrevinhador e bebedor de cafĂ©. Autor de "A VERTICALIZAĂĂO DA BARBĂRIE", entre outros ebooks.
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