Ubiratan Jorge Iorio
Avitória expressiva de Javier Milei na Argentina sopra uma lufada de esperança no país e, por extensão, na América Latina, ao mesmo tempo que nos apresenta uma neblina de interrogações. Sem sombra de dúvida o resultado das eleições suscita júbilo, por representar o triunfo da liberdade dos indivíduos sobre a tutela do coletivismo populista. Milei será o primeiro chefe de Estado da região totalmente identificado com a Escola Austríaca de Economia e, mais do que isso, com o ramo mais libertário dessa corrente de pensamento econômico, conhecido como anarcocapitalismo, associado principalmente a Murray Rothbard (1926-1995), bem como a Walter Block (1941) e Hans-Hermann Hoppe (1949).
Economista com boa formação, ele sabe muito bem que a receita para recolocar a Argentina nos trilhos depois de tantas décadas de peronismo, militarismo, kirchnerismo, patrimonialismo e estatismo, todos vícios alimentadores de ineficiência e corrupção, é teoricamente simples: reformas vigorosas no Estado para enxugá-lo, responsabilidade fiscal permanente, intolerância absoluta com a inflação, taxa de câmbio realista, desregulamentação substancial, privatizações corajosas, abertura econômica arrojada, estímulos ousados à competição, liberdade de entrada e de saída em todos os mercados, reescalonamento da dívida externa e respeito absoluto aos direitos de propriedade. Com tal agenda, a economia argentina tem tudo para acordar de sua octogenária letargia, levantar-se e arrancar, por ser um país potencialmente rico e porque está demonstrado historicamente que esse é o único caminho possível para a prosperidade, o mesmo que foi percorrido no Brasil entre 2019 e 2022, com bons resultados, apesar dos estragos causados pela pandemia, mas que foi jogado fora pela administração desastrosa atual.
É curioso que, no caso brasileiro, tínhamos um presidente que não se identificava com o liberalismo, era simplesmente um patriota, mas que teve o mérito de confiar a economia a um “posto Ipiranga” competente, o que o transformou ocasionalmente no mais liberal de nossos chefes de Estado do período republicano. Já no caso argentino, o novo mandatário acumulará as funções de presidente com a do “posto Ipiranga”, porque tem a base teórica requerida e, muito provavelmente, nomeará ministros afinados com a sua visão, como Emilio Ocampo e Nicolas Cachanosky, dois economistas com excelente currículo. Isso será bom para a Argentina, para o Brasil, para a região e mesmo para o mundo.
Mas por que festejar a vitória de Milei? E por que é importante ter ciência das dificuldades que ele certamente terá pela frente? E o que dizer de sua proposta mais polêmica, a saber, a dolarização e a extinção do Banco Central?
Por que festejar a vitória de Milei?
Podemos começar pelas notícias boas. A primeira é que os eleitores argentinos disseram um “não” retumbante ao peronismo e suas variantes, motivados pelo calamitoso governo de Alberto Fernández, que levou um país já bastante debilitado a uma inflação anual de 140%, a um déficit fiscal elevadíssimo, a uma taxa básica de juros de 130%, a uma taxa de desemprego imensa, que lançou 40% da população à pobreza e 10% à miséria. Boa parte dos eleitores de Milei, influenciada por sua combatividade, simplesmente votou contra esses flagelos, mas é difícil crer que possa ser chamada de liberal e muito menos de adepta do anarcocapitalismo. Em outras palavras, a vitória de Milei, até prova em contrário, apenas representa o apoio de uma população completamente esgotada com o peronismo. Por isso, ele não pode sequer pensar em fracassar, porque isso poderá representar a volta ao poder nas próximas eleições das mesmas forças que historicamente levaram a Argentina da prosperidade à estagnação e ao retrocesso. Já o seu sucesso representará uma transformação extremamente benéfica, que será a cura da “síndrome de sonhar com o passado” de que padecem há várias gerações os argentinos, fazendo com que passem a olhar com otimismo para o futuro.
Em segundo lugar, algumas medidas sugeridas pelo plano de governo e que não dependem tanto da anuência dos políticos podem surtir efeitos no curto prazo, o que servirá para dar “um gás” ao governo, enquanto as reformas mais profundas estiverem sendo debatidas e, eventualmente, aprovadas, além de deixarem bem nítido o tamanho da estupidez econômica do governo Fernández, semelhante à que vem marcando o Brasil desde janeiro deste ano.
Outro aspecto positivo é que a plataforma internacional de Milei pode colocar um ponto final na enorme idiotice ideológica comandada pelo Foro de São Paulo e que atende por vários nomes, como Mercosul, Unasul e integração da América Latina, pela simples razão de que sem a participação da Argentina a farra desses anões diplomáticos obviamente tenderá a “melar”, tal como aconteceu entre 2019 e 2022, quando era o Brasil que se recusava a abraçar a embromação da “união supranacional”. A soma de pobrezas não é igual à riqueza.
O quarto ponto positivo é que Milei parece resgatar, tal como Bolsonaro, os valores do bom nacionalismo e do patriotismo, em contraposição ao globalismo da Nova Ordem Mundial e do famigerado protocolo ESG, o que não deixa de ser curioso, uma vez que ele se coloca como um anarcocapitalista.
Em quinto lugar, não podemos deixar de considerar que medidas duras e que mexem com o comodismo e os ganhos históricos de muita gente, tais como as sugeridas por Milei, são menos difíceis de serem aceitas em períodos de crises agudas, como a que o país ora atravessa. O tempo, então, é agora.
Prováveis dificuldades
É óbvio que as ideias que Milei pretende transformar em medidas incomodam muita gente, contrariam interesses e mexem com cartórios seculares. Por isso, é certo que o seu governo vai encontrar fortes resistências políticas, mas ele parece determinado a realizar o que prometeu, sabe dessas dificuldades e do que precisa ser feito. Além disso, na hipótese pessimista de que só consiga realizar, digamos, a metade das reformas que pretende fazer, já será um ganho extraordinário para o país.
Dolarização e extinção do Banco Central
Sem dúvida, essas são as suas propostas mais polêmicas. Seu objetivo é exorcizar definitivamente o fantasma da inflação, que costuma aterrorizar a Argentina desde que o populismo se instalou na Casa Rosada.
Ora, a inflação — que não deve ser entendida simplesmente como um aumento contínuo e generalizado de preços (este é o seu efeito, não a sua causa), mas como uma queda progressiva do poder de compra da unidade monetária e a correspondente elevação dos preços — é um método pelo qual o governo, o sistema bancário que ele controla e os grupos que ele favorece politicamente adquirem a capacidade de expropriar parte da riqueza dos demais grupos da sociedade.
O grande desafio é proteger a moeda contra os falsos remédios receitados por muitos economistas, que podem surtir efeitos paliativos no curto prazo, o que sustenta sua popularidade e os leva a crer que possuem a chave da salvação. Há centenas desses economistas espalhados pelo mundo, cujas teses, obviamente, quase sempre soam em harmonia com os interesses políticos de diversos grupos, mas têm o efeito de, no longo prazo, abalar aquela que precisa ser a instituição mais bem guardada dentre todas: a moeda, cuja estabilidade deve ser o começo de qualquer conversa sobre crescimento sustentado.
Portanto, é mais do que aconselhável, é crucial — e Milei tem plena consciência disso — que a sociedade, mediante o estabelecimento de instituições adequadas, impeça que a política monetária fique sujeita às pressões de natureza política. Ou, como gostava de dizer Hayek, é essencial impedir que os gatos tenham acesso ao pires de leite.
Para esse fim, há três mecanismos institucionais alternativos. O primeiro é a autonomia do Banco Central, escolha feita pelo Brasil e que, embora não tenha sido proposta por economistas da Escola Austríaca, pode de fato a isolar a política monetária das pressões políticas, separando teoricamente a política monetária da política fiscal. Não deixa de ser uma solução, mas pode perder eficácia caso políticos continuem nomeando diretores para o banco, como já começou a acontecer no Brasil neste ano. Uma diretoria formada por economistas conservadores, certamente, para o bem ou para o mal, toma decisões diferentes das adotadas por diretores “progressistas”. De pouco vale ter uma autoridade monetária “independente”, se suas decisões não forem corretas.
O segundo é o regime do padrão-ouro, que consiste em amarrar a emissão de moeda ao estoque de ouro. O programa de Milei sugere algo parecido, com o dólar fazendo o papel do ouro e a dolarização total da economia, ao que acrescenta a extinção pura e simples do Banco Central. O problema é que, ao renunciar à sua própria moeda, o país automaticamente abre mão de sua política monetária, que passa a ser pura e simplesmente a do país emissor da reserva utilizada como moeda, no caso, os Estados Unidos.
E o terceiro, sugerido por Hayek, consiste na implantação de um sistema com várias moedas circulantes, emitidas tanto por bancos privados como pelo Banco Central, em que se estimularia a competição entre elas, de modo que as moedas das instituições bancárias administradas mais eficientemente teriam aceitação maior do que as emitidas pelos bancos mal administrados e, portanto, seus poderes de compra seriam mais elevados do que os das segundas, o que faria o sistema tender para a estabilidade.
Venho há muito tempo defendendo essa terceira alternativa. Seria salutar pôr fim à moeda de curso forçado ou legal e permitir trocas, operações e contratos em qualquer moeda, privada ou emitida pelo Banco Central. Com isso, seria possível dolarizar a economia, mas com as vantagens de um sistema competitivo, dando liberdade a qualquer pessoa ou empresa para escolher a moeda em que deposita mais confiança, inclusive moedas digitais.
Voltando aos bons conselhos de Mises
Em 1959, Ludwig von Mises proferiu uma série de seis palestras na Universidade de Buenos Aires, em que, com a simplicidade que a plateia heterogênea exigia, mas com a assertividade que o caracterizava, instou os argentinos a colocarem um basta no populismo intervencionista de Perón e dos generais que naquele ano estavam no poder. Sobre essas exposições, tive ocasião de escrever, no prefácio de seu livro As Seis Lições: “Mostra Ludwig von Mises que a melhor política econômica é aquela que limita o governo a criar as condições que permitem aos indivíduos perseguirem seus próprios objetivos e viverem em paz e que a obrigação do governo é simplesmente proteger a vida e a propriedade para permitir que as pessoas desfrutem da liberdade e da oportunidade de cooperar e de efetuar trocas entre si. Assim, o governo deve criar o ambiente que permita que o capitalismo possa florescer”.
Os argentinos, ao longo dos 64 anos seguintes, desdenharam de seus conselhos. Manifesto a esperança de que, a partir de Milei — que conhece a sua obra — resgatem os seus ensinamentos para recolocarem o país no seu devido lugar.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/economia/a-aposta-na-liberdade/
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