Gazeta do Povo
O Estado de Direito significa o funcionamento da vida social sob o impĂ©rio da lei, nĂŁo baseado na vontade discricionĂĄria dos homens e dos agentes pĂșblicos, e Ă© o melhor sistema encontrado pela humanidade para estabelecer as regras de convivĂȘncia social e as puniçÔes pelas violaçÔes devidamente provadas, sob o impĂ©rio de leis votadas por representantes do povo, legitimamente eleitos, e que tenham como princĂpios fundamentais o devido processo legal, o direito Ă ampla defesa, a presunção de inocĂȘncia, o ĂŽnus da prova incumbido a quem acusa e o direito de recurso a grau superior, entre outros.
De inĂcio, cabe ressalvar que a lei nĂŁo Ă© qualquer norma emanada de autoridades pĂșblicas, como portarias e decretos executivos, pois nĂŁo Ă© o fato de uma norma simplesmente emanar de algum poder pĂșblico que a torna legitimamente uma lei. A lei somente serĂĄ autĂȘntica se representar uma norma universal de conduta justa aplicĂĄvel a um nĂșmero desconhecido de casos futuros. O Estado de Direito significou expressivo progresso da civilização ao substituir o regime anterior, baseado na submissĂŁo do indivĂduo Ă vontade de um Ășnico homem, o rei, o soberano.
O Brasil, infelizmente, é pródigo em situaçÔes que acabam atuando como tentativa de restabelecer o império de um homem só.
Nos regimes absolutistas, submetidos Ă vontade de reis ou imperadores, estes comumente exerciam a tirania pela qual as condenaçÔes e puniçÔes sem julgamento e sem direito de defesa eram atos rotineiros de governo. O Estado de Direito implica necessariamente que ninguĂ©m pode ser punido fora do processo legal, no qual seja garantido ao acusado o direito ao contraditĂłrio e Ă ampla defesa, e implica tambĂ©m que o agente da lei Ă© obrigado e responsĂĄvel pela obediĂȘncia Ă s etapas do processo legal. Nesse regime, a punição somente pode se dar caso a acusação seja provada por circunstĂąncias e meios previstos em lei, vedado o arbĂtrio pessoal da autoridade ou do juiz, porquanto eventual punição fora da lei e por mera vontade pessoal do juiz Ă© similar Ă justiça feita com as prĂłprias mĂŁos.
Assim, o Estado de Direito em sociedade democrĂĄtica requer a aprovação, pelos representantes do povo, de um cĂłdigo de leis que estipule os crimes e as puniçÔes e, tambĂ©m, de cĂłdigos processuais com as regras de acusação, defesa, provas, apresentação de atenuantes, agravantes e tudo o mais requerido para que as conclusĂ”es sobre materialidade, autoria, motivaçÔes, circunstĂąncias, agravantes e atenuantes sejam expressĂŁo da verdade, de forma a nĂŁo restar dĂșvida sobre o delito, a autoria e todos os aspectos do fato.
Aceitar que um presidente, um ministro do STF ou um agente pĂșblico isoladamente estabeleça normas necessĂĄrias Ă existĂȘncia de um mĂnimo de civilização Ă© ferir de morte a democracia.
Pela importĂąncia da vida, da liberdade e da propriedade, e para possibilitar a paz e o progresso, uma nação civilizada jamais pode admitir a aprovação de norma relacionada ao Estado de Direito e seus cĂłdigos fora do Poder Legislativo, no qual a população Ă© representada por legisladores eleitos pelo voto livre, secreto e direto dos indivĂduos. Nesse sentido, Ă© casuĂstica, condenĂĄvel, inaceitĂĄvel e contrĂĄria ao Estado de Direito qualquer imposição ou alteração, explĂcita ou implĂcita, da Constituição, do CĂłdigo Penal, do CĂłdigo de Processo Penal e demais clĂĄusulas tĂpicas do Estado de Direito por medida unilateral de qualquer autoridade pĂșblica.
Nessa mesma linha, muito menos podem quaisquer membros do Poder Judiciårio, individual ou coletivamente, legislar ou alterar as bases e as normas do Estado de Direito, pois o juiz a quem fosse permitido criar regras perderia toda a isenção para seguir na função de julgador, pela óbvia razão de que é invålido o julgamento proferido pelo próprio feitor da norma que sustenta a sentença.
O Brasil, infelizmente, Ă© prĂłdigo em situaçÔes que acabam atuando como tentativa de restabelecer o impĂ©rio de um homem sĂł. O Executivo tem as medidas provisĂłrias, que, criadas para socorrer fatos determinados ocorridos em situação de emergĂȘncia que requer solução pronta e rĂĄpida, acabaram se tornando norma legislativa baixada pelo presidente da RepĂșblica para qualquer assunto cotidiano sob mera vontade do governante. JĂĄ o Poder JudiciĂĄrio vive uma epidemia de decisĂ”es monocrĂĄticas nas quais, por exemplo, a vontade de um Ășnico membro do Supremo Tribunal Federal triunfa sobre todo o resto, inclusive as deliberaçÔes de quase 600 representantes eleitos pelo povo no Congresso Nacional.
O Legislativo, aliĂĄs, analisa PEC que regula tais decisĂ”es monocrĂĄticas, despertando reação bastante extremada da parte de alguns ministros. Aceitar que um presidente da RepĂșblica, um ministro do STF ou qualquer agente pĂșblico isoladamente estabeleça normas necessĂĄrias Ă existĂȘncia de um mĂnimo de civilização Ă© ferir de morte a democracia, o Estado de Direito e a possibilidade de vida social pacĂfica, em que as soluçÔes dos conflitos se façam sob regras que respeitem a vida, a propriedade, a liberdade e a segurança dos cidadĂŁos, alĂ©m de prejudicar os esforços sociais na promoção do crescimento econĂŽmico e do desenvolvimento social.
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