Elio Gaspari, O Globo
Sergio Moro lapidou o discurso desconexo de defesa de lei e da ordem que
levou Jair Bolsonaro à Presidência da República. Para listar apenas
alguns aspectos do pacote do ministro, homicida ficará trancado por,
pelo menos, três quintos da duração da sentença; condenados na segunda
instância irão para a tranca, e caixa 2 passará a ser crime. A repressão
aos crimes de colarinho branco será tão dura quanto aquela que
habitualmente atinge pessoas de pele negra. Essas propostas serão
festejadas nos balcões das lanchonetes, por onde passam pessoas que têm
medo de andar na rua à noite.
Moro quer trazer para o Direito brasileiro a instituição saxônica das
“soluções negociadas”. Na essência, elas permitem um acordo entre réu e a
promotoria. O cidadão reconhece sua culpa, negocia a redução da pena
com o promotor e com isso descongestiona-se o Judiciário. Na teoria, faz
sentido. Na prática, toda importação de regras do Direito saxônico
equivale a tentar calçar um par de stilettos de Christian Louboutin nos
pés de um jogador de futebol. O calo resultante da divulgação por Moro,
no meio da campanha eleitoral, de um anexo irrelevante e inconclusivo da
colaboração do ex-ministro Antonio Palocci está na memória política do
país. Felizmente, Moro fala agora em “soluções negociadas”. Até há pouco
falava em plea bargain , talvez para evitar uma das traduções possíveis e evitando a palavra “barganha”.
No Judiciário americano, todas as delações protegidas pela teoria
curitibana da “bosta seca” teriam sido mandadas ao lixo. Lá, se um
delator diz uma coisa, e outro diz o contrário, mexe-se na bosta seca,
empesteia-se a sala e anula-se uma delas, ou as duas.
A solução negociada entre o réu e o Ministério Público pode ser um sonho
de consumo. Contudo, no Brasil leis suecas convivem com uma realidade
haitiana. No que vai dar, não se pode saber. Afinal de contas, o
ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, da PM do Rio, jamais faria um
acordo com a promotoria. O “Caveira”, Senhor da milícia de Rio das
Pedras, era amigo de Fabrício Queiroz. Sua mãe e sua mulher foram
empregadas por ele no gabinete de Flávio Bolsonaro porque, nas palavras
do colega, “a família passava por grande dificuldade, pois à época ele
estava injustamente preso.” Libertado, “Caveira” foi absolvido. Não se
sabe por quê, está foragido. Na outra ponta, qualquer preso que está
apanhando numa delegacia faz qualquer acordo.
Num ponto o projeto de Moro parece um jabuti. Quando ele diz que um juiz
poderá deixar de impor uma pena ao agente público se “o excesso
decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Falta definir
“medo” e “violenta emoção”. Os policiais cariocas que mataram um cidadão
que empunhava uma furadeira e outro que carregava um guarda-chuva
tiveram medo, foram surpreendidos ou estavam emocionados?
A proposta de Moro acertou no atacado. Contém apenas lombadas no varejo,
mas o Congresso terá tempo para aperfeiçoar o projeto, e pode-se
acreditar que senadores e deputados não tentarão proteger o instituto do
caixa 2. O surgimento de uma bancada com toques de demagogia haitiana
será um contraponto à demagogia sueca. Nesse sentido Moro desviou-se das
duas.
O ministro passou a vida no gabinete de juiz, onde sua caneta mudava a
realidade. Na nova cadeira, fez tudo direito com a caneta, mas a
realidade continuará a assombrá-lo. As milícias do Rio e as quadrilhas
do Ceará expuseram-se logo que ele chegou a Brasília, e continuam lá.
extraídaderota2014blogspot
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