por Vilma Gryzinski
Uma foto tirada em 1984 pode arruinar a carreira política de um homem em
2019? Uma denúncia de abuso sexual ocorrida em 2004 pode impedir seu
eventual sucessor de tomar posse? E em até que momento da gestação um
aborto pode ser legalmente praticado?
Todas estas perguntas complicadas estão conectadas no caso de Ralph
Northam, o governador de Virginia, a mais antiga colônia na época do
domínio britânico, berço da Revolução Americana e também da secessão dos
Estados Confederados, origem da guerra civil.
História antiga e o clima político moderno misturam-se para complicar a
situação de Northam, neurologista pediátrico, oficial do Exército e,
originalmente, simpatizante de George Bush, antes de entrar para a
política como democrata.
Uma ficha impecável para um estado que ainda tem um considerável
eleitorado republicano, mas foi “colonizado” pelas castas liberais que
trabalham no governo, na imprensa e outras atividades características de
uma capital como Washington, quase vizinha.
Até que dois desastres aconteceram quase que simultaneamente. Uma
deputada – ou delegada, como chamam em Virginia – apresentou um projeto
de lei permitindo o aborto até praticamente a hora do parto.
Kathy Tran, que fugiu do Vietnã comunista quando era criança, defendeu
seu projeto dizendo que a criança faz parte do corpo da mãe até que o
cordão umbilical seja cortado, provocando aversão e revolta entre a
maioria da população americana que é contra o aborto depois de três
meses de gestação.
Northam defendeu a deputada numa entrevista mais chocante ainda, considerando-se que trabalhou como pediatra.
Em casos de bebês nascidos com deformidades, a mãe e “seus médicos”
teriam autonomia para discutir o que fazer. Com a ressalva de que o bebê
seria mantido em condições “confortáveis” enquanto se decidia entre a
vida e a morte do recém-nascido.
Seja qual for a posição que alguém tenha sobre o aborto, o nome disso é infanticídio.
Segundo a versão mais conhecida até agora, um cidadão comum, revoltado
com as declarações do governador, passou para um site pouco conhecido
uma página do livro de formatura em medicina de Northam, datado de 1984.
Entre fotos comuns dele, uma imagem repugnante: um jovem com o rosto
pintado de preto e roupas estridentes ao lado de outro com fantasia de
membro da Ku Klux Klan – camisolão e capuz pontudo cobrindo o rosto.
O mundo caiu para Northam. As principais lideranças democratas exigiram
que ele renunciasse, apesar do extenso mea culpa do governador.
Sob pressão pesada, ele primeiro disse que era um dos dois homens da
foto, mas não sabia qual. Depois, negou. Mas, numa entrevista bizarra,
admitiu ter pintado o rosto de preto para um concurso de imitação de
Michael Jackson.
A vida dele só piorou. O vice-governador Justin Fairfax já estava
preparando a mudança quando o mesmo site divulgou a mensagem de uma
mulher não identificada, relembrando uma história que o Washington Post
investigou, mas não chegou a publicar.
Segundo a mulher, ela e Fairfax, que é negro, se conheceram na convenção
democrata de Boston, em 2004. Ela concordou em ir ao quarto de hotel
dele, beijaram-se e foram para a cama.
Aí, diz, ele a dominou fisicamente e a obrigou a fazer sexo oral. Nunca
houve nenhuma queixa à polícia. Não apareceu ninguém dizendo ter ouvido
da denunciante a história do abuso. Fairfax disse que houve sexo
consensual. Seja o que for que tenha acontecido, foi há quinze anos.
Na pressa de montar o cavalinho passando selado à sua frente, Fairfax
chegou a mais do que insinuar que era “muita coincidência” o caso, já
investigado pelo Washington Post, vir a público agora. Ou seja, Northam
tinha vazado a história. Pegou mal e ele voltou atrás.
Tanto o governador quanto o vice estão envolvidos em encrencas nas quais a linha entre justiça e injustiça parece borrada.
Northam por uma “brincadeira” de cunho racista que aconteceu há quase 35
anos. Nada em sua vida e sua carreira política indica que tenha
praticado atos discriminatórios.
A CNN conseguiu o livro de formatura e disse que outros alunos apareciam
em fotos comprometedoras, fantasiados como o que no Brasil seria “nega
maluca” – o que ninguém pensaria em repetir nos dias atuais.
É justo que Northam seja punido por uma idiotice de juventude ou é um excesso politicamente correto?
E seu vice, vai para o linchamento virtual como aconteceu com o juiz
Brett Kavanaugh quando foi nomeado para a Suprema Corte, afetado por uma
denúncia sexual de comprovação impossível e outras completamente
falsas?
Ou o fato de ser negro até certo ponto o protege?
E por que uma foto de 1984, por mais condenável que seja, provoca
reações muito mais fortes do que a defesa de uma lei permitindo um fim
“confortável” para recém-nascidos indesejados?
A discussão é típica do momento vivido nos Estados Unidos, onde um
professor publicou no New York Times um artigo acusando o filme Mary
Poppings – o original, com Julie Andrews – de racismo por causa da cena
em que a babá mágica aparece com o rosto sujo de fuligem de chaminé –
uma imitação da perversa “black face” usada no passado por atores
brancos para ridicularizar negros.
Tom Brady, o técnico e o dono dos Patriots, consagrados pela vitória no
campeonato de futebol americano, foram acusados de encarnar a
“supremacia branca” num artigo do site Daily Beast. Motivo? Apoiam
Donald Trump.
Ralph Northam garantiu que não vai renunciar de jeito nenhum. No
campeonato que exageros politicamente corretos que parece ser disputado
por uma parte da imprensa americana, ele já foi julgado em segunda
instância. E está ferrado.
Mais difícil ficou defender o vice como um exemplo de virtudes semidivinas.
Kathy Tran passou a andar com segurança e garantiu que foi vítima de
“desinformações”, embora tenha aparecido em vídeo dizendo exatamente o
que disse.
A coisa está feia para todos os lados.
Veja
extraídaderota2014blogspot
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