por Roberto DaMatta
Não li e não gostei. Mas, em compensação, não tenho coragem de resistir
ao pedido de um amigo. Eis a cara e a coroa do paradoxo nacional, cujo
ideal é controlar a lei e ser querido por todo mundo. Estaria nisso o
centro do populismo e da nossa alergia a tomar decisões?
Em 1808, a Corte portuguesa cozinhou em banho-maria Napoleão e, fugindo
para o Brasil, mudou o centro de gravidade do seu vasto império
colonial. A matriz virou colônia num processo irônico e carnavalesco de
mudança, justamente para evitá-la. Eis, quem sabe, a origem do nosso
“mudancismo”: mudar para permanecer congelado.
Impedir, proibir e rejeitar fazem parte da nossa base ideológica tanto
quanto o proteger que nega a realidade. Depende do lado em que as
pessoas se situam, mas é preciso repetir que o foco no lado direito ou
esquerdo esconde as distâncias entre os pés (descalços) e a cabeça
(vazia).
O novo agride um sistema de medalhões. Tudo — fascismo, comunismo e,
quem sabe, até uma insegura igualdade democrática — é possível desde que
os protocolos do “bom-tom” sejam observados. O conservadoríssimo
inconsciente leva ao paroxismo das adversidades da competição eleitoral,
que atingiu em cheio a vida diária e veio para ficar.
Eles se encontram num comício no qual todos queriam mudar o mundo. O
orador — Jonas Fortuna — era um filósofo paulista certo de que seu
partido tinha a faca capaz de cortar com justiça o Reino de Jambom, como
dizia um injustiçado Lima Barreto.
Elena, uma baiana igualmente radical, infiltrada pelo grupo político
oposto, ouvia, controlando a sensação de transitar entre uma Mata Hari e
um Romeu em casa de Capuleto. Sua missão era saber mais sobre as
táticas do inimigo. Pensou em fugir, como fazia habitualmente, mas
apaixonou-se pelo orador com a mesma intensidade com a qual rejeitava
suas ideias.
Não compreendia como o rosto, os gestos e o sotaque paulistano do
adversário, até então desumano, enredavam seu coração. Ficou perplexa
com a presença avassaladora do amor — para ela um mero ardil burguês —
por uma pessoa que mal conhecia e, mais que isso, ideologicamente
detestável. Mas o fato concreto foi que, como uma pedra, o amor desabou
leve sobre ela.
Rosinha Radical, a amiga que a levou ao encontro, traindo seu
radicalismo por amizade, chamou atenção para o absurdo de uma pessoa se
apaixonar por um inimigo político.
Mas, como em outros casos idênticos, ela ouviu a mesma resposta dos
apaixonados: a política e a economia precisam de motivos; mas o amor só
precisa dele mesmo. Amor com motivo não é amor, é politicalha ou
sacanagem...
— O meu amor por esse canalhinha inimigo — argumentou Elena — acontece justamente pela contrariedade e descontinuidade.
— Acho que você está lendo muito o Lévi-Strauss — falou Rosinha.
—Me apresenta, vai...
Ao terminar o encontro e em meio à gritaria das palavras de ordem, os radicais viram-se frente à frente.
— Muito prazer. Gostou do meu discurso?
—Odiei. Mas amei o seu jeito de falar.
— De que lado você está?
— Do seu lado. Somos iguais. Sou tão radical quanto você.
Ele a olhou nos olhos com a firmeza dos heróis revolucionários e
sentiu-se misteriosamente envolvido por seu coração. Por um instante,
quis prosseguir, mas desistiu.
— Vamos pra minha casa. Estou tonto.
— Eu também. Há um choque entre minha cabeça e o meu coração.
— Romeu e Julieta no Brasil?
Beberam duas garrafas de cerveja e, na vivência descarada da contradição entre o amor e a ideologia, entregaram-se.
— Li que tudo tem o seu contrário. Eu acho isso um barato. Sem
contradição, não há tesão. Se minha cabeça permitisse, eu votava com
vocês.
— Isso é inexplicável, porque eu penso do mesmo modo. Você é a
reacionária-revolucionária mais linda que eu vi na vida. Envolva-me, por
Deus, no seu conservadorismo.
— Eu também quero ser abraçada pelo seu viés revolucionário mentiroso e detestável!
Falavam numa estranha sincronia quando ele beijou a inimiga na boca,
devolvendo-lhe, com muito amor, o amor que recebia; o qual, quanto mais
era egoísta e radical, mais induzia prazer aos amantes.
The End.
extraídaderota2014blogspot
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