por Fernando Gabeira
FOTO ANDRADE JUNIOR
Os cubanos foram embora. O Programa Mais Médicos não existe mais, tal
como foi criado no governo Dilma. Sou otimista quanto ao futuro do
programa. Talvez possa ser feito de uma forma melhor.
Breve, a discussão ideológica ficará para trás, e então poderemos nos
concentrar no que realmente interessa: a saúde de milhões de
brasileiros.
A grande oportunidade que está diante de nós é a ida de milhares de
jovens médicos brasileiros para o interior. As condições salariais são
atraentes. O dinheiro ficaria no Brasil.
Mas não é esse o principal ganho. O encontro de milhares de jovens da
classe média urbana com os rincões do Brasil pode representar para eles
um grande aprendizado.
Já houve grandes momentos históricos em que esse encontro se deu. Na
Rússia, no século XIX, quando milhares de estudantes foram compartilhar o
cotidiano dos camponeses. Havia muito romantismo, ideias
revolucionárias, uma visão idealizada dos pobres do campo. Embora o
resultado tenha sido revoluções esmagadas, foi um período rico para a
própria cultura russa.
Aqui, no Brasil, as idealizações não são as mesmas. Minha impressão é
que os brasileiros vão encontrar no interior surpresas positivas sobre
as pessoas que vivem lá. Os russos se decepcionaram porque esperavam ver
nos camponeses um reflexo de suas fantasias urbanas.
A ida dos médicos brasileiros teria o mesmo valor pedagógico que a
carreira oferece aos militares: percorrer diferentes pontos do país,
sentir a diversidade, acreditar mais ainda no potencial do Brasil.
Não há contraindicação ideológica. Ouso dizer mesmo para uma juventude
de esquerda dos grandes centros: o choque cultural seria benéfico.
Certamente, sairia mais realista.
Meu primeiro trabalho na TV, creio em 2014, foi sobre uma cidade do
Maranhão chamada Buriti Bravo. Já era uma aproximação com o Programa
Mais Médicos. Uma visita às cidades mais desamparadas, no Maranhão e no
Amapá.
Semana passada, procurei algumas pessoas como o escritor Antonio Lino,
que fez uma dezena de viagens para escrever sobre o Mais Médicos. E
também o sanitarista Hermano Castro, da Fiocruz.
Minhas primeiras conclusões: o programa é essencial para as cidades
cobertas; ele pode ser feito majoritariamente por brasileiros, o que não
significa que alguns estrangeiros não possam participar, dentro das
regras do jogo. Constatei também que o gargalo é a formação desse tipo
de médico. Isto estava previsto no programa de Dilma, mas não foi bem
desenvolvido.
É preciso ser realista. Apesar dos salários, ainda é muito difícil fixar
um jovem médico no interior. A realidade me leva de novo ao mundo das
ideias.
A única maneira de atenuar realmente o problema é uma valorização
simbólica desse tipo de trabalho. Transmitir um pouco, por exemplo, a
chama que ilumina um grupo como o Médicos Sem Fronteiras, que leva ajuda
a pessoas em grandes dificuldades. No caso, o governo comprar essa
ideia talvez não ajude tanto quanto se fosse aceita pelo mundo cultural.
Não proponho heróis positivos, são pessoas de carne e osso que merecem
um reconhecimento maior.
Tanto os cubanos quanto a esquerda encaram esse trabalho como o produto
de uma visão socialista, e desafiamos a verem na medicina um mercado, e
não adotarem suas teses.
Esquecem que a exportação de serviços médicos é um importante item no
comércio exterior cubano. É um negócio de Estado. Não só o Médicos Sem
Fronteiras, mas inúmeras organizações humanitárias no mundo demonstram
que essa presença ao lado dos mais fracos não é, unicamente, uma
consequência da visão socialista.
Para completar a semana, ouvi uma conferência do ministro alemão
Cristoph Bundscherer num painel sobre indústria 4.0. Paradoxalmente, ele
falava de um futuro tecnológico com diagnósticos à distância, portanto,
com menos médicos.
Se combinarmos a formação dos novos médicos com uma abertura para o
mundo tecnológico, é possível atenuar esse grande problema brasileiro.
No momento, temos um pepino. No futuro, talvez nos lembremos da passagem
dos cubanos apenas como um doloroso aprendizado. É raro um contrato ser
rompido assim, numa área tão sensível, sem que tenhamos salvaguardas.
Isso faz parte do legado. Ideologias se interessam pelas ideias, não
pelas pessoas.
O Globo
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