A foto, na última página de O Diário, não é grande coisa, e a impressão, desbotada por quase meio século de arquivo, pior ainda - mas dá para ver um rapaz de roupa clara que um policial tem preso pela gola; à frente dele, imobilizado numa "gravata", outro moço se contorce, prestes a ser tragado pela goela de um camburão. "Dois guardas tentam levar o estudante preso e o outro presta atenção", descreve uma legenda que parece não fazer fé no poder de informação da fotografia.
É a primeira vez que vejo essa imagem - e eis que, num susto, reconheço o cara apanhado pela gola.
Para dizer como Roberto Carlos: esse cara sou eu.
Sou eu, e vou passar os próximos 17 dias numa cela que, sendo térrea, não posso chamar de "porão da ditadura". Vivemos ainda uma barra relativamente leve, pois o AI-5 só virá daqui a dois anos e pouco. Mesmo assim, a situação em que me encontro é mais aflitiva que a descrita aqui no último domingo, quando relatei as agruras de operário de fábrica que vivi aos 15 anos para purgar pecados de estudante fragorosamente reprovado.
Dureza aqueles despertares madrugais, aquelas horas de trabalho em pé. Mas era pena, em todo caso, a ser cumprida em regime semiaberto - menos amarga, portanto, do que essa que agora me espera, aos 21. De novo, tem bomba na história, mas de outra natureza: bombas de "efeito moral" que me fizeram correr, no Centro de Belo Horizonte, até de ser enlatado no camburão. Para mim, terminava a passeata estudantil contra a eleição indireta, naquele dia - 3 de outubro de 1966 -, do segundo presidente militar do regime de 64, o nada elevado Costa e Silva.
Não espere de mim um relato de heroísmos que não houve. Não estava ali de bobeira, é verdade, como um sacristão pascácio que também caiu e que ao sair da cana, muitos dias depois, ainda não tinha entendido bem o que lhe acontecera. Sem o talento de um condutor das massas, eu era apenas um a mais a berrar desaforos contra os milicos.
Sendo leve a barra, não sofri violência física, eu e os 12 companheiros de gaiola, distribuídos por duas celas. Em matéria de tortura, o máximo que me tocou foi o convívio com um escriba que, entre chuvas de perdigotos, nos submetia à audição de sua versalhada incendiária.
Fizemos camaradagem com um dos carcereiros, o Zé do Norte, que nos deixava esticar o banho de chuveiro. Um radinho de pilha nos fartou de Chris Montez, nas paradas com The More I See You, e, ai de nós, um grude musical chamado Pãozinho do Leblon, na voz de Rosa Maria: "Fico triste em pensar, pãozinho, / que não é meu seu coração". Se você não esteve em 1966, saiba que "pão" era homem bonito.
Com exceção da quentinha (nem tanto) do primeiro dia, o passadio era bom, pois a comida vinha de casa e as famílias caprichavam. Ganhei uma fartura de maços de cigarros, um deles levado pelo secretário da minha faculdade - gentileza protocolar de quem ainda não sabia, e eu tampouco, que anos mais tarde ele seria avô de meus filhos.
Não vou contar, uma vez mais, que na cela em frente tínhamos a simpática vizinhança do sociólogo Bolívar Lamounier, a décadas da tucania e ainda oxítono - Bolivar -, cujo calvário merecerá dedicatória e alusão ("...alguns amigos nas prisões padecem...") num poema de Affonso Romano de Sant'Anna.
Para defender-nos no Superior Tribunal Militar, tivemos ninguém menos que o grande Sobral Pinto, cujo escritório conseguiu, em 20 de outubro, um habeas corpus por 12 a zero, ainda hoje a maior goleada em minha vida. Para constrangimento nosso, o relator do processo foi o general Olímpio Mourão Filho - sim, aquele que em 31 de março desencadeou o golpe ao botar a tropa na estrada rumo ao Rio de Janeiro. "Os jovens são capazes de morrer por um ideal e não será a polícia que irá impedir esta luta", perorou o general ante seus pares.
Outro dia, passeando por Belo Horizonte, me bateu vontade de revisitar a cela 3. Não deu: o antigo prédio do Dops, na avenida Afonso Pena, virou albergue exclusivo para gente apanhada com o nariz na botija. Depois das políticas, são de outra ordem as aspirações que ali agora se reprimem.
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